Folha de S. Paulo


Fantasma que ronda

É raro encontrar uma percepção tão forte e tão aguda da fronteira social entre a vida que deveria ser e a vida que se dissolve. Ela está no romance autobiográfico "Acabar com Eddy Bellegueule", de Édouard Louis. Escrito em 2013, foi um enorme sucesso de vendas na França, imediatamente traduzido para 20 línguas. Em português, foi publicado pela Fumo Editora, de Lisboa, em 2014. No Brasil, nenhum editor se interessou e, portanto, quem quiser ler deve encomendar e ter a paciência da espera por várias semanas.

Mas vale, vale mil vezes, a espera. Seu autor vem de uma cidadezinha na Picardia, região norte da França, muito atingida pela crise econômica, pela desindustrialização, pelo desemprego. Sua família operária e seu meio social ofereceram-lhe infância difícil e dolorosa. A frase que abre esse livro permanece martelando na cabeça do leitor: "De minha infância não tenho nenhuma lembrança feliz".

Havia um motivo para que Édouard Louis sofresse mais do que os outros. Ele era diferente. "Parece que eu nasci assim, ninguém nunca compreendeu a origem, a gênese, essa força desconhecida que havia tomado conta de mim desde meu nascimento, que me fazia prisioneiro em meu próprio corpo. Quando comecei a me exprimir, a aprender a linguagem, minha voz tomou espontaneamente entonações femininas. Era mais aguda que a dos outros meninos. Cada vez que eu tomava a palavra, minhas mãos se agitavam freneticamente, em todos os sentidos, torciam-se, agitavam o ar."

Sofreu preconceitos que se insinuavam nas palavras, condenatórias, do meio familiar, ou que se manifestavam, brutais, na violência do bullying escolar. Mas isso foi também sua força. Porque fez com que ele encontrasse nos estudos o seu refúgio. Conseguiu chegar à École Normale Supérieure, uma das assim chamadas Grandes Escolas, instituições máximas de ensino, as mais prestigiosas e seletivas da França.

Ele ascendeu, portanto, e teve consequente mudança de classe social –e também de nome. Chamava-se realmente Eddy Bellegueule; Eddy por causa de um cantor popular; Bellegueule, o sobrenome, quer dizer algo como "bonitão". Para passar mais discreto no meio intelectual, trocou –legalmente– pelo neutro Édouard Louis.

O fenômeno da ascensão social pelo conhecimento é exceção não assim tão rara na França, e apenas isso daria a Édouard Louis um lugar meritório.

Mas o extraordinário está no poder literário do livro, regido por uma capacidade aguda de observar e analisar o meio de onde se origina, capacidade instintiva de etnógrafo, etnólogo, etnolinguista.

Mais ainda. Édouard Louis estudou sociologia. Chegou mesmo a organizar, em 2013, um livro de análises sobre Bourdieu e a insubmissão. Tudo isso lhe permite transmitir, com força artística, não apenas os aspectos descritivos de sua história mas a compreensão aguda de seus determinismos.

Sua mãe lamenta ter ficado grávida com 17 anos e levar uma vida de pobreza. O autor comenta: "Ela pensava ter cometido erros sem tê-los de fato desejado, ter bloqueado a estrada para um destino melhor, uma vida mais fácil e mais confortável [...] Ela não compreendia que sua trajetória, o que chamava de seus erros, entrava, ao contrário, num conjunto de mecanismos perfeitamente lógicos, como que regrados de antemão, implacáveis. Ela não percebia que sua família, seus parentes, seus irmãos, irmãs, seus próprios filhos e a quase totalidade dos habitantes da cidadezinha, tinham conhecido os mesmos problemas e, portanto, aquilo que chamava de erros eram, em realidade, apenas a mais perfeita expressão do desenrolar normal das coisas".

Esse determinismo faz de "Acabar com Eddy Bellegueule" um formidável romance social: impossível não pensar em Émile Zola, tão absurdamente rarefeito nos catálogos das editoras brasileiras, e de quem Édouard Louis é leitor.

O destino traçado não exclui o fantasma do caos, muito ao contrário. A podridão física das casas, a dissolução das esperanças, as humilhações das contas não pagas, a velhice que se desfaz em imundícies nutrem a veemência poderosa do livro. São elas a consequência das determinantes econômicas e sociais que, enunciadas de modo abstrato, como eu faço agora, não parecem assim tão ameaçadoras. Porém sentidas por dentro, como nesse romance, surgem no vivido, no cotidiano, como monstruoso fantasma que ronda. Fantasma do retorno ao caos, do deixar de ser o pouco que se é, da angústia real que aperta, com mão de ferro e sem trégua, o coração, o esôfago, as tripas.


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