Folha de S. Paulo


Estilistas que desprezaram mulher de Trump têm a misoginia do presidente

Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress
Binho Barreto para Ilustrada de 31.jan.2017.

Teremos muito tempo para falar de Donald Trump. Leitores atentos sabem que não gosto do bicho. Não mudei de opinião.

Mas hoje prefiro falar de Melania Trump. Primeiro, porque a senhora parece-me mais civilizada do que o marido. Mas também porque houve uma "controvérsia" sobre quem vestiria a primeira-dama para o dia da tomada de posse de Donald Trump.

Dizem os jornais que os principais criadores de trapos se recusaram a fazê-lo. Um deles, Tom Ford, foi suficientemente grosseiro para afirmar que não gostaria de ter o seu nome associado à senhora. Quem será esse Tom Ford? Em que caverna foi educado? Será que ele usa talheres com competência mínima?

Mistério. Imagino que Tom Ford seja o mesmo diretor de cinema que os americanos, sempre com os seus complexos de inferioridade face aos europeus, consideram um caso único de "sofisticação". Pausa para risadas.

Mas voltemos a Melania Trump. Porque, no dia da tomada de posse, foi Ralph Lauren quem desenhou os trapos para salvar a honra do convento. Belos trapos, por sinal.

O caso, que em princípio não deveria merecer dois minutos de atenção, revela três coisas sobre a "inteligência" liberal (no sentido americano do adjetivo) com relevância política.

Em primeiro lugar, registra-se com agrado a forma como a ética da boçalidade é exercida publicamente e aplaudida publicamente. Uma coisa é recusar vestir uma senhora, o que já me parece uma atitude casca grossa. Outra é humilhá-la como se fosse a encarnação da peste.

As mulheres que marcharam contra a misoginia de Donald Trump pelo visto não se incomodaram com a misoginia de Tom Ford e restante trupe. Quando são as mulheres dos nossos inimigos, que se dane a defesa da dignidade feminina. Fogueira com elas!

Mas Melania Trump foi humilhada por quê?

Segundo ponto: por "crime de proximidade". Curioso. Eu julgava que esse tipo de delito era exclusivo de regimes totalitários. O século 20 foi pródigo em processos desse gênero: alguém fugia de uma "democracia popular" e a família era responsabilizada e punida. Em muitos países onde o fanatismo islamita impera, a moda continua.

Melania Trump não é responsável pelas ideias ou ações do marido. Não é conhecida por nenhuma espécie de militância política. E, segundo consta, ficará em Nova York para cuidar do filho. A humilhação pública só revela o nível de violência e fanatismo que define as exatas brigadas que acusam Trump (o Donald) de violência e fanatismo.

Mas existe um terceiro ponto que expõe, de forma mais profunda, a hipocrisia liberal. Melania é imigrante. Da Eslovênia. E nas declarações de aviltamento era impossível não vislumbrar o desprezo, para não dizer a xenofobia, face ao "white trash" do leste europeu. Pelo visto, Donald Trump não detém o exclusivo da xenofobia.

Eis a ironia fatal: os estilistas que desprezaram Melania Trump são bastante parecidos com o marido dela. Na misoginia, no fanatismo, até no ranço xenófobo que esse caso aparentemente menor revelou ao mundo.

Anotei o nome de todos os "criadores" que participaram nesse novo julgamento de Salem. Não me interessa se o fizeram por razões políticas, econômicas –ou por pura estupidez congênita. Talvez exista uma combinação das três. De mim, jamais levarão um tostão.

Esse privilégio reservo para o sr. Ralph Lauren. Já era cliente do cavalheiro. Um pouco de nostalgia: na primeira vez que fui a Londres sozinho, aos 16 ou 17 anos, levava dinheiro contado para sobreviver um mês.

Pois sim. Quando cheguei à cidade, entrei na loja de New Bond Street e, em ato tresloucado, comprei um belíssimo tweed de verão (sim, um tweed de verão) e fiquei a contar tostões nas semanas seguintes. Vivi como um mendigo mas vesti-me como um príncipe.

Vejo agora que valeu a pena o sacrifício. E digo mais: enquanto a presidência Trump durar, os meus blazers, as minhas calças, as minhas camisas e até as minhas cuecas serão compradas na loja respectiva.

Podemos viver como mendigos mas jamais perder as maneiras.


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