Folha de S. Paulo


Barbudos, imperialistas & neonazistas

Os portugueses foram às urnas para escolher um novo Presidente da República e elegeram Marcelo Rebelo de Sousa, 67, professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa e o mais influente comentador político das últimas décadas em Portugal.

Apesar do próprio não gostar do rótulo, é um nome que vem da direita (ou, como Marcelo repetiu durante a campanha, "da esquerda da direita") e isso significa um facto novo na democracia lusa: depois dos dois mandatos de Cavaco Silva (2006 - 2016), o Palácio de Belém continuará nos próximos 5 anos (ou 10, caso exista reeleição) longe do terreno ideológico socialista que sempre considerou a Presidência da República como coutada exclusiva dos camaradas. Como explicar isso?

Duas razões. A primeira é que Marcelo Rebelo de Sousa atingiu uma notoriedade midiática sem paralelo com qualquer rival. Isso facilitou a vitória logo no primeiro turno - e permitiu que o candidato conquistasse votos em toda a sociedade portuguesa, da esquerda à direita, sem esquecer as almas apolíticas que pura e simplesmente se habituaram a escutar os comentários televisivos de Marcelo nas suas predicas dominicais. Marcelo, sem exagero, já era membro da família nas casas dos portugueses.

A segunda razão para o sucesso deve-se à desistência da esquerda, e em especial do Partido Socialista, em apresentar um candidato credível para rivalizar com Marcelo. A área socialista teve dois candidatos, nenhum deles particularmente relevante, o que tornou a vitória da direita ainda mais inevitável.

Dito isto, o futuro está longe de ser o mesmo passeio no campo que Marcelo Rebelo de Sousa experimentou na campanha eleitoral (onde nem sequer usou cartazes de rua e outras propagandas tradicionais).

Depois das eleições legislativas de 2015, onde a coalização PSD/CDS ganhou o pleito depois de 4 anos de "políticas de austeridade" (caso singular no contexto europeu), esse governo reeleito seria derrubado no Parlamento por uma "frente de esquerda" liderada pelo Partido Socialista.

O novo premiê, o socialista António Costa, tomou posse com o apoio parlamentar do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda (uma espécie de Syriza grego em versão lusitana), o que gera de imediato a pergunta que vale 1 milhão de dólares: como é possível acabar com a "austeridade" em Portugal, tal como a extrema-esquerda exige, quando o mesmo António Costa se comprometeu a respeitar os duros compromissos assumidos com a União Europeia em matéria de déficit e de dívida?

O futuro dará a sua resposta. Mas poucos acreditam na possibilidade de conservar o bolo e comê-lo. Eis o principal desafio que o novo Presidente terá nas mãos: evitar uma crise política (em Portugal) e, ao mesmo tempo, uma crise política (em Bruxelas).

*

Depois dos ataques sexuais em Colônia e outras cidades alemãs (e europeias) na virada do ano, a pergunta anda nas bocas da Europa: como integrar os muçulmanos mais problemáticos em sociedades onde as mulheres têm certas liberdades de vestuário, maquiagem e até opinião?

Sim, é possível esconder qualquer crime sexual que seja cometido pelas "minorias", uma estratégia que a Alemanha tentou seguir (sem sucesso).

Sim, é possível inaugurar aulas de "respeito às mulheres", onde se ensina às "minorias" que o "derrière" de uma senhora é comparável a um quadro no museu ("Favor não tocar").

Ou, então, também é possível seguir as palavras do Bispo de Londres, que elogiou os padres que usam barba. Nas palavras do reverendíssimo Richard Chartres, a barba facilita a aproximação com as comunidades muçulmanas. A barba é símbolo de "respeito" e "sacralidade" - e os padres que já aderiram à moda podem confirmar as vantagens da pilosidade no trato com o Outro.

Claro que as palavras do bispo abrem-se a novas possibilidades: se a barba já faz sucesso, porque motivo não devem as sociedades ocidentais adotar o "estilo de vida" que é possível admirar na Arábia Saudita ou no Irã?

Para início de conversa, esse "estilo de vida" significaria barba para os homens; véu (ou burca) para as mulheres; um adeus ao vinho e a certas carnes pecaminosas; e, a seu tempo, o uso do chicote para as inevitáveis punições criminais.

*

Existe em Oxford, no Oriel College, uma estátua de Cecil Rhodes. Momento Wikipédia: Cecil John Rhodes (1853 - 1902) foi um feroz imperialista britânico, defensor da superioridade da raça inglesa e da sua missão para civilizar os "bárbaros" da África do Sul.
 
Um CV desse quilate é anátema para os estudantes universitários, que iniciaram uma campanha para remover a estátua. Até porque existem precedentes: a Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, já inaugurou as festividades, aplicando a outra estátua de Rhodes o mesmo tipo de tratamento que o pessoal do Estado Islâmico costuma reservar às obras de arte que perturbam o equilíbrio neurológico da seita.
 
O chanceler da Universidade de Oxford opõe-se ao vandalismo. Mas até quando será possível proteger a integridade de Rhodes perante as turbas fanáticas?

Mistério. E, se me permitem, apreensão: o que seria da herança lusitana se os estudantes brasileiros seguissem o exemplo dos seus homólogos britânicos? Que destino teriam as estátuas, os monumentos e até as toponímias que os colonizadores portugueses deixaram no Brasil?  
 
Até quando a estátua de Pedro Álvares Cabral permaneceria intocada no Jardim Ibirapuera?
 
Que aconteceria com as igrejas que cobrem o país de norte a sul e que foram erguidas pelos meus antepassados?
 
E será que os anticolonialistas permitiriam que Vasco da Gama continuasse a manchar com o seu nome um clube de futebol carioca?
 
Chega de conversa. Melhor não dar ideias a ninguém.

*

Passeio pela livraria e lá encontro "Mein Kampf" ("Minha Luta"), de Adolf Hitler, na versão portuguesa. Previsível: a obra entrou em domínio público e, só em Portugal, dizem-me que haverá três traduções.
 
Confesso tédio perante o assunto. Mesmo que o assunto tenha despertado indignação e polêmicas, na Alemanha e não só. A publicação da obra pode ser combustível para neonazistas?
 
Ou, pelo contrário, "banaliza" o livro, que assim sai da sombra venenosa dos "livros proibidos"?
 
Sempre considerei a discussão ligeiramente idiota. Um neonazista não precisa de uma publicação "oficial" para chafurdar em "Mein Kampf". O que não significa que um neonazista seja um leitor clandestino de Hitler.
 
"Mein Kampf", pela sua dimensão e mediocridade, apresenta ainda um desafio adicional: é tão delirantemente escrito que só por piada imaginamos o cérebro de um neonazista a lê-lo com a atenção de um exegeta.
 
E o que é válido para o nazismo, é válido para o comunismo. Raymond Aron, em pleno Maio de 1968, entrava na sala de aula e, perante uma plateia de homúnculos revolucionários, perguntava: "Eu já li o "Das Kapital" três vezes na vida. Quantas vezes os senhores leram Marx?"
 
O auditório ficava em silêncio, embora a ignorância não devesse ser motivo de vergonha. Comunistas que nunca leram Marx constituem a regra, não a excepção.
 
Em desespero de causa, poder-se-ia defender os camaradas e afirmar que a leitura principal foi Lênin, e não Marx. Mas até isso é abusar do optimismo. Mesmo "O Estado e a Revolução", para citar apenas um dos panfletos mais acessíveis de Lênin, apresenta um grau de complexidade que não está ao alcance da cabeça comunista média.
 
Imaginar que um livro pode "converter" alguém ao nazismo ou ao comunismo é subestimar os cérebros respectivos.

*

O Parlamento inglês, essa nobre instituição por onde já passaram Burke, Disraeli ou Churchill, dedicou uma das suas sessões para determinar se o Reino Unido deve impedir Donald Trump de entrar no país.
 
Acabo de escrever estas linhas, releio-as e não acredito no que escrevi. Quem acredita? A questão não lida com a personalidade (repulsiva, confesso) de Donald Trump. Muito menos com as suas proclamações incendiárias de que os Estados Unidos deveriam encerrar as fronteiras a muçulmanos.
 
O que está em causa é tão simplesmente saber como foi possível que Westminster tenha descido tão baixo nos temas que debate —e na importância que lhes concede.
 
Saber se Trump pode entrar no Reino Unido —ainda por cima se ele vencer a corrida presidencial, cenário improvável mas não impossível— tem a mesma relevância que discutir a arquitetura do seu cabelo. Com a óbvia diferença de que saber o segredo daquele penteado talvez fosse mais interessante.


Endereço da página: