Folha de S. Paulo


O Estúdio Cinco de Fellini na Cinecittà

Quando vim a Roma pela primeira vez, antes de fazer turismo no Coliseu ou no Pantheon, me enfiei na linha A do metrô e fui até quase o final, estação Cinecittà. Eu queria entrar no Estúdio Cinco, onde Fellini trabalhou por cerca de 40 anos e rodou filmes como "8 1/2" e "La Dolce Vita", entre tantos outros. Depois de meia-hora de viagem, subi as escadas da estação suburbana até encontrar a fachada daqueles que ainda são os maiores estúdios de cinema da Europa. A construção de arquitetura fascista, inaugurada por Mussolini em 1937, que chegou a virar campo de refugiados durante a segunda guerra e depois foi reinventada por cineastas do mundo inteiro, era a minha Basílica de São Pedro. A peregrinação foi interrompida por um guarda antipático —os estúdios estavam fechados para visitação, sem previsão de abertura.

Eu não desistiria fácil de entrar em um filme de Fellini. Voltei pela mesma linha de metrô até a estação Barberini, destino Via Veneto. Caminhei por ali e gastei meus últimos tostões no Café de Paris e no Harry's Bar, mas aquilo tudo colonizado pelo turismo não tinha muita mística —e não parecia nem um pouco com a Via Veneto de "La Dolce Vita" que, afinal, era uma construção orientada por Fellini dentro dos estúdios da Cinecittà. Algo parecido ocorreu quando vi a Fontana de Trevi pela primeira vez. Mesmo não tendo sido recriada em cenografia —o banho da Anita Ekberg e seu convite imortal, "Marcello, come here!", foi rodado numa madrugada de inverno em locação —havia algo fora de lugar que fazia daquilo a esquálida reprodução de uma realidade distante.

Quando Sylvia vai até a fonte e a vemos de costas, a profundidade de campo das lentes que o fotógrafo Otello Martinelli usou em 1959 faz com que a Fontana pareça mais larga e a caminhada de Mastroianni atrás dela mais longa. Confrontar esse cena com a muvuca vulgar de turistas e vendedores de bugigangas comprimidos numa calçada estreita a fotografar aquele monumento desproporcional e cheio de excessos barrocos é uma crueldade que não pude evitar. Depois daquilo, lembro de ter vagado ao longo do Rio Tevere enquanto segurava o terno por tras do ombro com o dedo minimo da mao direita e tocava um trompete imaginario com a esquerda. Um cachorro noturno correndo atrás do próprio rabo - sem encontrá-lo. Depois de chutar muitas pedrinhas, terminei a madrugada num bar grotesco em Testaccio, jogando verdade e consequência valendo campari com duas jovens calipígias da Apúlia.

Isso foi há dez anos. Desde então voltei a Roma número suficiente de vezes para poder evitar pontos turísticos, mas só ontem consegui atravessar os portões da Cinecittà, finalmente abertos ao público. A exposição permanente, apesar de alguns figurinos originais e justo percurso histórico, é mixuruca. O que vale os 20 euros é a visita guiada que nos permite entrar dentro dos estúdios.

Apesar da carga histórica do local que abrigou sets de Antonioni, Visconti e Pasolini, entre tantos outros, e da expertise legendária de seus cenógrafos e técnicos, os estúdios têm recebido poucas produções de cinema e TV a cada ano. Ainda estão lá os cenários do seriado Roma e partes do que Scorsese usou em "Gangues de Nova Iorque", um filme de 2002. Ao caminhar por praças medievais em reutilização entre escombros e rascunhos de fachadas, percebemos que a famosa piscina da Cinecittà, onde o transatlântico Rex de "Amarcord" um dia ancorou, fica quase ao lado de um conjunto habitacional separado do estúdio por uma rua.

Finalmente entro no Estúdio Cinco. Metade do reino de 2.800 metros quadrados hoje abriga um set promocional do último filme do Tarantino, cuja estréia italiana em 70mm foi ao lado. Perto do que representa o lugar, as marquetagens do cineasta americano são irrelevantes e tento esquecê-las. Com o olhar preso no teto, as plataformas suspensas entre canhões de luz a trinta e cinco metros de altura, caminho pelo Estúdio Cinco do Fellini, o maior portal da história do cinema, o lugar e a metáfora, "onde tudo começa e tudo acaba num tempo infinito!" - e tropeço num refletor abandonado, quebro o vidro no chão de concreto, tiro meu casaco e o jogo com pressa sobre o acidente, corro sobre os calcanhares num passo ridículo e me escondo por trás de um biombo, onde estou até agora.


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