Folha de S. Paulo


A possibilidade de ser Miele

Em 2007, publiquei um livro que começava com uma entrada fictícia de dicionário, um preâmbulo à la "Complexo de Portnoy", do Philip Roth. Era assim: "Dia Mastroianni - [Exp. Adj.]: Segundo o panléxico, é denominado "Mastroianni" (de Marcello, at. it., 1924-1996) o dia gasto em pândegas excursões a flanar na companhia de belas raparigas, à brisa das circunstâncias e alheio a qualquer casuística. Para o "Dia Mastroianni" clássico, faz-se mister o uso de terno, óculos escuros e, preferencialmente, chapéus. Alguns lexicógrafos ainda incluem em suas definições o compulsivo auto-panegírico, a ingestão de dry martini e/ou gim-tônica, apostas em corridas de cavalos, ligeiras crises metafísicas e a presença em rodas e festas para onde não se foi previamente invitado."

Fosse eu mais sincero e meu amigo Fabrício Corsaletti, inventor do termo, mais carioca, poderíamos ter cunhado o Dia Miele. Afinal, desde antes de minhas priápicas noites em frente a um televisor de tubo assistindo Cocktail no início dos anos 90, eu já o tinha como maior referência de nonchalance, elegância e bonvivantismo. Encontrá-lo na TV ou num bar carioca era abrir um sorriso. O Miele era uma lenda que nos abraçava. Todo mundo ficava um pouco Miele na sua presença. O Frank Sinatra era Frank Sinatra sozinho. O Miele se compartilhava, sua aura era contagiante.

O Paulo Roberto Pires cravou: "Ele cantava, mas não era cantor. Tocava, mas não era músico. Contava piada, mas nunca foi humorista. Fazia shows, mas não era propriamente artista: Luiz Carlos Miele foi, em seus 77 anos, simplesmente Miele. Achava-o adorável, um pedaço da história boêmia do Rio e do melhor espírito carioca."

Um jovem Miele poderia ser no meu livro o " incipiente galã a caminhar com a gravata amarrada na testa, segurando o terno por trás do ombro com o dedo mínimo da mão direita, tocando um trompete imaginário com a esquerda, improvisando ébrios passos de dança pelas pedras portuguesas do Bairro Britânico." Mas o narrador de "O Dia Mastroianni" é um fanfarrão existencialista que termina vendo seu delírio de solipsismo materializar-se: tudo o que ele não vê começa a ser tragado pela escuridão. Pelas suas costas explodem as luzes dos postes, desabam os prédios, desintegram-se o presente e o passado de quem fica para trás. Afinal, para sustentar o espírito leve, é necessário que só permaneça o que ele escolhe ver. As desgraças da cidade e tudo o que mais não lhe interessa simplesmente não existem.

Há um vídeo emblemático no YouTube que mostra, em julho de 2013, no Leblon, um cambaleante Miele - pensei em escrever aqui "o artista", "o ator", "o diretor", "o produtor", "o músico", mas nada disso parece se aplicar, Miele era apenas Miele, único em sua categoria. E no vídeo ele caminha com hesitação, entre gritos, sons de helicóptero, policiais e fumaça, pelo campo minado no qual o orquidário da rua Dias Ferreira tinha se transformado depois de mais um protesto. Está desorientado, trança as pernas, provavelmente de pileque. Enquanto vemos sua silhueta diante da luz de faróis, algum cretino por trás do vídeo diz: "caralho, imagina filmar a morte do Miele."

Apesar da sua banalidade, o vídeo é emblemático porque inspira a seguinte digressão de botequim: a sabedoria, inteligência, bom humor e carisma ilimitados do nosso ídolo não serviam de nada ali. Ele estava perdido - como todos nós, uns mais que outros. Com sua morte, não é apenas esse personagem generoso e excepcional que se vai, mas a própria possibilidade de ser Miele. É o fim de uma Era. Não teremos outro, e talvez seja o preço a pagar pela perda da nossa ingenuidade.


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