Folha de S. Paulo


Residência em Óbidos

Estou em Óbidos. A linda cidade portuguesa me ofereceu uma dessas bolsas de residência artística que surgem na existência de escritores, músicos e artistas visuais como contraponto à fome, ao desespero, ao instinto de parar. Poderia aqui escrever também sobre o trabalho temporário e mal remunerado que viola a alma, exige prazo e não tem data de pagamento. Os salões abarrotados de mediocridade, onde todos estão à venda e o preço é baixo. Ou, ainda, o eventual mogul do mercado que nos cruza o caminho com o arrojo estético e senso histórico de uma cadeira de balanço.

Enquanto tudo isso nos azeda o timo, em alguns casos com efeitos irreversíveis, a residência artística é uma pausa na nossa promiscuidade física e mental. São as férias do rame-rame doméstico do artista sem herança empenhado em testar a subsistência fora de horários de escritório.

Esta deve ser a terceira ou quarta que me tira do buraco –a primeira residência foi justamente antes da primeira FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Dessa vez, espero dar sorte para a inauguração de outro festival literário, o Folio (Festa Literária Internacional de Óbidos) que acontece nesta vila medieval entre os dias 15 e 25 de outubro.

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Óbidos tem cerca de 2.000 habitantes. Diz-se que dentro dos seus muros dormem apenas 80 pessoas. No entanto, aqui temos sete livrarias. A mais impressionante ocupa a nave central da Igreja de Santiago, um templo ao pé do castelo que remota ao século 12, hoje tomado por livros. (E o que são bibliotecas hoje em dia além de lugares de fé? Há mais devoção nelas que em muitos templos com isenção fiscal.) Outras livrarias funcionam dentro de um mercado biológico, de um museu, de uma adega etc. Elas fazem parte de uma iniciativa chamada Vila Literária de Óbidos e o plano é chegar ao número de 11. Imagino que mesmo antes disso, a vila murada já deva ter a maior proporção livraria/habitante do mundo.

O idealizador dessas maravilhas, e que aqui tem o apoio da Câmara Municipal, é o mesmo da Ler Devagar, na LX Factory em Alcântara, Lisboa. Trata-se de um colosso instalado no galpão de uma antiga gráfica industrial com um pé direito gigantesco e toda a maquinaria de impressão à mostra. Vemos os livros vivos e as prensas mortas ao lado –e ainda há comidas e um bar. Não sei se José Pinho e seus sócios ganham dinheiro com tudo isso, mas certamente fazem do mundo um lugar melhor.

Por volta destas livrarias estou e estarei, entre algumas idas e voltas, até o final do ano. A única coisa que preciso fazer aqui é escrever. Protegido entre os muros como uma rainha moura. Ou, melhor, como um penitente num claustro ou um leproso numa gafaria. Nas pausas, à ginjinha nas caves dos bares.

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Caminhar de madrugada por estas silenciosas ruelas de pedra é retroceder séculos. A cidade cristalizou-se como vila medieval na arquitetura e imaginário, mas sua ocupação por seres humanos remonta a séculos antes de Cristo. E por aqui passaram romanos, visigodos e mouros antes da conquista cristã.

A casa onde estou era de um sapateiro, mas sabe-se lá quem foram os locatários do imóvel nos últimos séculos. Levanto a questão pois todas as noites, antes de dormir, começam a ranger as madeiras do telhado e por vezes repete-se uma batida grave que ecoa pelas paredes e pelo piso. Não temos sótão, muito menos vizinhos de porta, acima ou abaixo.

Na primeira noite, eu e a francesa fomos acordados por eles e tivemos que sair. Depois da ronda pelos bares, voltamos e encontramos o mesmo barulho. Não houve prece ou obscenidade que os fizesse parar. Como a convivência com os fantasmas de Óbidos me parece pormenor curioso, além de infinitamente mais agradável que a intempérie que me aguarda no Brasil, ofereci a eles uma taça de vinho –e comecei a negociar minha permanência.


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