Folha de S. Paulo


Um drogado na Igreja Universal

O programa da Igreja Universal do Reino de Deus, transmitido pela Rede TV, usou fotos do meu rosto e trechos da minha coluna "Saindo do armário", publicada nesta Folha. O objetivo, claro, era reforçar a campanha da Igreja contra o uso de drogas e contra a descriminalização das mesmas. Como não autorizei uso de imagem e minhas frases foram tiradas do contexto numa edição distorcida, eles serão notificados.

Na segunda-feira passada, enquanto meu rosto de drogado na Igreja Universal espantava moscas por todo o território nacional, eu olhava a tarde cair num dos miradouros de Lisboa. É curioso que tenha recebido a notícia em Portugal, país onde o porte de drogas para uso pessoal não é crime desde 2001. Passando a tratar o consumo essencialmente como um problema de saúde e não criminal, o país virou referência. Principalmente porque, desde então, o consumo caiu. Não é um milagre: além do tratamento de saúde ser mais barato que cadeia, ele também recupera melhor os viciados.

Qualquer organização que se diga cristã deveria prezar por defender valores humanitários. Ninguém precisa ser usuário ou aprovar o uso de drogas para entender que a presente política anti-drogas é um fracasso com custo social altíssimo. Não só porque não reduziu o consumo, muito ao contrário, mas porque matou mais do que qualquer droga recreativa seria capaz. A proibição, as organizações criminosas e a guerra armada tornaram-se problema muito maior do que as drogas em si.

A questão aqui não é liberar o barato do homem branco de classe média. Menos ainda o consumo dos dependentes químicos que procuram ajuda em igrejas como a Universal. Na prática, ele já está liberado. O urgente é estancar a sangria dos mais atingidos. Enquanto as mortes provocadas pelo conflito armado nas favelas forem consideradas danos colaterais justificáveis no contexto da guerra às drogas, continuaremos a conviver com o genocídio da população negra, jovem e pobre no Brasil.

A quem interessa isso? Certamente, não a nós, usuários ou não, cristãos ou não. Até dentro do campo simbólico ocupado pelos pastores, a guerra contra as drogas é questionável. Não há uma única frase da Bíblia que advogue por isso. O livro sagrado fala dos males do excesso do álcool, a única droga citada, mas não promove qualquer tipo de banimento ou repressão institucional ao consumo. Até porque o primeiro milagre de Jesus foi justamente converter água em vinho num casamento em Canaã.

O que o livro sagrado traz são condenações pesadas à mentira e apostasia dos falsos profetas que distorcem fundamentos bíblicos. E se não tem qualquer ensinamento sobre proibicionismo, preferindo educar seus leitores sobre o uso razoável do vinho, a Bíblia sim advoga pela solidariedade com os mais necessitados. Não pela punição ou encarceramento dos mesmos.

Pastores muitas vezes em suas pregações perguntam-se, quando numa encruzilhada retórica: "O que Jesus faria?" Certamente não advogaria por mandar um viciado para a prisão. Muito menos abraçaria lobbies defendendo redução de maioridade penal aliando-se com a bancada da bala em Brasília. Tampouco creio que Cristo ficaria feliz ao ver-se representado no Congresso Federal por grupos que pregam o ódio, a intolerância, a fobia e a vingança.

Caros pastores da Universal, diferenças à parte, faço um apelo: percebam que não pode haver algo menos cristão no Brasil hoje em dia do que apoiar que se trate este problema de saúde como criminal. As trágicas consequências dessa política veem-se todos os dias, a bater na porta de muitas das suas igrejas. O Bispo Edir Macedo notabilizou-se por defender a descriminalização do aborto, justamente com o objetivo de salvar vidas. Espera-se que corajosamente venha a defender e advogar junto a seus fiéis também pela descriminalização do uso de drogas. Seria um fruto excepcional.


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