Folha de S. Paulo


Junho de 2013 hoje

O protesto seguia pacífico até que a ação começou com um grito do comandante. Um soldado se esgueira por trás da linha de frente da polícia, cochichando no ouvido de cada um dos homens de farda. Eles colocam as máscaras de gás, um agouro sinistro para os poucos que percebem a ação. Pequenos grupos de policiais abaixam-se por trás dos escudos e inserem cápsulas em seus morteiros.

Nossos sentidos são invadidos pelo travo áspero da nuvem. O gás vermelho arranha nossa garganta, como se mastigássemos cacos de vidro –se as bandeiras não nos unem, a polícia militar o fará. São eles contra nós. Corremos sob uma luz nublada de sinalizadores, explosões e tiros.

Os homens da lei avançam contra a multidão de civis que solta um uivo grave e responde atirando pedras e garrafas flamejantes sob a lente de telefones celulares e câmeras de TV. Encontram-se num baque. Superando o peso das suas couraças, policiais inauguram hematomas nos crânios, troncos e membros dos homens sem uniforme. Alguns saem carregados pelos cabelos até a viatura mais próxima. No dia seguinte, seriam chamados de vândalos pelos jornais.

O motim não tem fisionomia ou forma –é improvisado. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia na outra esquina. São independentes, não há um chefe geral nem um plano estabelecido. O que une os mais jovens numa espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade é o mesmo ódio a polícia. Uma força passava, era vaiada, avançava sobre o povo, este pulverizava-se, ficando um ou outro a apanhar de muitos num canto sob a marquise.

Pelo caminho até a Presidente Vargas a mesma atmosfera de terror e expectativa, com mais testosterona que esperança.

A festa da democracia: os manifestantes choram, engasgam, cospem. Alguns vomitam suas ideias ali mesmo, pelas calçadas. Pela primeira vez em suas vidas, os brancos de classe média ali presentes correriam da polícia com medo. Até então, o genocídio de jovens negros nas favelas das cidades brasileiras sob o pretexto da guerra contra as droguinhas que consumíamos era algo distante. Ainda que muitos tivessem passado a adolescência vendo pelas janelas o traçado de balas de fuzil nos morros da Zona Sul e Norte do Rio de Janeiro. Junto ao eco dos bailes funk, eles eram o constante lembrete de que havia um outro mundo iluminado e proibido, uma Faixa de Gaza sem muros pulsando sobre as nossas cabeças. E daí?

Tudo isso era apenas um eco. A política antidrogas que servia para legitimar o apartheid racial e perpetuar as funções originais da PM carioca –fundada durante o Império, em 1809, com o principal objetivo de caçar e matar negros, então escravizados– não atingiria cariocas de fina estirpe e pele clara.

A primeira vez que aquele pessoal nascido com um pouco mais de sorte entendeu realmente o que era a polícia militar brasileira foi nos protestos de junho de 2013. A história faz-se muitas vezes em soluços, a partir desses efeitos colaterais. Se o Brasil elegeu o congresso mais conservador de sua história no ano seguinte e o MPL optou dissolver-se como uma nota de rodapé, a grande consequência daquela correria foi o aumento da visibilidade da violência policial e um questionamento furioso da imprensa, que prontificou-se a ratificar o vandalismo da PM através de uma leitura mentirosa e enviesada da cena das manifestações.

Dois anos depois, não haveria discussão sobre a vida nas cidades brasileiras que fugisse da violência policial e da necessidade de reforma e desmilitarização da polícia. Dois anos depois, o abraço de grandes veículos a grupos políticos em detrimento ao interesse dos seus leitores terminaria por afugentá-los com óbvios reflexos: nunca tantos jornalistas foram demitidos. Os protestos de junho de 2013 abriram certas feridas que vão demorar para fechar.


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