Folha de S. Paulo


Wagner Moura e demais artistas brasileiros

Em entrevista a "Rolling Stone" deste mês, o ator Wagner Moura foi questionado sobre o que achava de um texto meu, "Saindo do armário". Moura interpretou o Capitão Nascimento, e divulga no momento um seriado onde fez o traficante Pablo Escobar. A escolha de papéis tão simbólicos e sua opinião favorável à descriminalização das drogas fazem a pergunta do repórter André Rodrigues pertinente. Meu texto é uma convocação a personalidades como ele.

Cito a resposta inteira: "Eu li e achei que vai muito bem até o parágrafo final, que é um tanto quanto chantagista. Se você é uma pessoa pública, então tem a obrigação de sair do armário, de dizer que é gay, que fuma maconha ou cheira cocaína? Desculpa, ninguém tem a obrigação de falar da vida pessoal. Nesse sentido sou liberal. Vale a liberdade de cada um. O compromisso do artista é com a sua arte. Nenhuma pessoa tem que colocar sua vida pessoal na roda."

O ator segue: "Por um lado, não me oponho a falar de política. Mas não gosto de falar sobre a minha vida. Eu sou a favor da liberdade de cada um ser quem é. Não venha me chantagear." E ainda, sobre ser perguntado se consome drogas: "A minha vida pessoal é minha vida pessoal. Por que eu não falo com revistas de celebridades? Porque é esse o tipo de pergunta que eles iriam fazer. Então, não espero essa pergunta de outro tipo de jornalismo."

No resto da entrevista, Wagner Moura fala sobre engordar para fazer personagens, ter um pai que era sargento e uma mãe dona de casa, criar os filhos numa bolha social no Rio de Janeiro, ser rotulado como esquerda caviar e, ainda, sobre ter chorado ao fim do filme "Divertida Mente". Ele também classifica a nossa geração, que nasceu durante a ditadura militar, como alienada. Apesar disso, seus posicionamentos políticos, detalhados de forma coerente ao longo das respostas, são afinados e o discurso é progressista. Além da legalização das drogas, o ator é a favor da legalização do aborto, do casamento gay e da política de cotas raciais. Tirando o momento em que classifica meu texto de chantagista, não discordo das suas respostas bonitas. Ocupamos exatamente o mesmo espectro ideológico.

No entanto, há uma evidente diferença. E acredito que ela começa justamente na palavra chantagista. Segundo o dicionário Houaiss, chantagem é a "pressão exercida sobre alguém para obter dinheiro ou favores mediante ameaças de revelação de fatos criminosos ou escandalosos (verídicos ou não)". O Aurélio ainda usa, ao lado de dinheiro e favores, a palavra vantagens.

O ator Wagner Moura diz que fui chantagista em meu último parágrafo. Além de não ter ameaçado revelar nada sobre ninguém, tenho dificuldades em enxergar quais vantagens, favores ou dinheiro eu poderia ganhar com uma confissão de usuário dele ou de qualquer outro artista. Aliás, meu posicionamento político e chamadas duras e antipáticas como a feita no texto dito chantagista só tem me feito perder vantagens, favores e dinheiro. Vantagens, favores e dinheiro do tipo que os artistas brasileiros, igualmente incomodados no discurso e confortáveis em suas bolhas, morrem de medo de perder. Obrigação? Não tenho, mas prefiro não correr o risco de desconfiar que me transformei num hipócrita bem remunerado.

Eu não ganharia nada com uma declaração de usuário de um ator. Mas talvez sim a sociedade como um todo. No caso, não apenas Wagner Moura é um grande intérprete e uma celebridade, mas o sujeito que incorporou o personagem mais marcante do cinema brasileiro em décadas, o capitão do Bope Roberto Nascimento. Um homicida fardado que transformou-se na personificação máxima da política de Estado que usa o proibicionismo como pretexto para marginalizar, oprimir e assassinar milhares de jovens negros em favelas e nas periferias de todo o país. É histórico: um dos principais símbolos da naturalização desse genocídio pela sociedade brasileira é o capitão Nascimento. Se o ator que interpretou esse personagem consumisse drogas atualmente, uma saída do armário seria revolucionária. Os dois, por motivos bastante diferentes, são ídolos nacionais.

Vivemos um momento em que a discussão finalmente está em pauta nas ruas e no STF (Supremo Tribunal Federal). Como a ideia de demonizar essas substâncias e marginalizar seus usuários é o principal pilar do proibicionismo, quanto mais usuários célebres saírem do armário, mais a sociedade começará a encarar o uso de drogas recreativas com normalidade –ou ao menos como um problema cuja solução passa longe do fuzil e da prisão. Se a sociedade brasileira tem aceitado por décadas o genocídio com tanta facilidade, por que não uma política liberal de drogas?

Os posicionamentos políticos do ator que confunde pedido de posição política com jornalismo de celebridades são bonitos na fotografia, mas tomadas de posição invisíveis a sociedade se não acompanhadas justamente de uma declaração pessoal. Quem escolhe o lugar confortável de priorizar a "liberdade de não falar da vida privada", talvez tenha que seguir vivendo num país onde a maioria não tem liberdade. E vive com medos de outra ordem.

Em 2015, a sua vida é política. Acabou o conforto. Calar-se é, na melhor das hipóteses, subestimar a importância de alguém com o seu peso na sociedade brasileira. No entanto, o futuro não terá o mesmo julgamento: o silêncio dos artistas será visto como cumplicidade e omissão. Sim, Wagner Moura e demais artistas brasileiros, transformei-me num chato disparando um "j'accuse" por semana. Não é simpática a abordagem, mas sabemos que um tiroteio ou uma dura numa favela é muito menos.

Em tempo, o meu parágrafo chantagista foi esse: "Afinal, o meio artístico brasileiro hoje é um dos mais dóceis do planeta quando trata-se de desafiar o status quo –talvez por covardia pura e simples de contrariar quem emite seus contracheques e quem pode lhes oferecer um edital. Que tentem dormir tranquilos: para quem tem voz nesse país, ficar em silêncio é sujar as mãos."


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