Folha de S. Paulo


Agasalho esportivo com capuz na Virada Cultural

Quando saí do edifício Farol e atravessei a rua Capitão Salomão, o meu amigo sr. Elek observava-me pela janela do terceiro andar. O relógio marcava 1h30 de uma madrugada longa, a Virada Cultural já reverberava por todo o vale do Anhangabaú e além.

Um grupo de jovens vestindo agasalhos esportivos com capuz desceu a rua correndo desde o largo do Paissandu e o sr. Elek gritou meu nome, querendo me alertar sobre um possível arrastão. Lá embaixo, eu segurava o casaco por trás do ombro com o indicador da mão direita enquanto improvisava ébrios passos de dança. Não ouvi o alerta em voz de barítono do meu amigo.

Ele observava preocupado que a trajetória dos jovens vestindo agasalhos esportivos com capuz aproximava-se da minha. Os outros transeuntes, também temerosos, recuaram e abriram espaço ao grupo. Eles correram na minha direção. Depois me ultrapassaram com indiferença surpreendente para todos os refugiados no bar da esquina. E também para o Sr. Elek que, entre o alívio e certa decepção, alimentou o fornilho do seu cachimbo e voltou para a mesa.

Ao longo daquela noite, vi dúzias de jovens vestindo agasalhos esportivos com capuz sendo revistados pela polícia e, quando meu amigo telefonou-me contando o episódio, entendi que para instigar o pavor noturno no centro de São Paulo o caminho seria mesmo vestir um agasalho esportivo com capuz.

Perambulei pela festa popular, ultrapassei cenários iluminados e multidões concentradas, ouvi saraus, sertanejo, música romântica, teatro infantil, e na rua Mauá consegui trocar o meu casaco preto por um agasalho esportivo com capuz. Foi na calçada de uma casa de forró onde consegui negociação com um pipoqueiro. Tive que casar uma onça.

Adequadamente paramentado com meu agasalho vermelho da Adidas com capuz, vi um ou dois shows (o Edgard Scandurra tocou guitarra em algum momento e também estava de capuz) e depois entrei no parque –da Luz– então colorido como um parque de diversões anfetaminado. Festas de nomes exóticos como Mamba Negra e Canil inauguraram uma fritolândia conduzida por DJs de música eletrônica que durou até a tarde do dia seguinte.

Já era dia quando idosas orientais do Bom Retiro começaram a surgir, observando com placidez seu recanto de domingo ser invadido por pastilheiros, lourinhas de calça de lamê, homens vestidos de mulher e vice-versa. As rodinhas dos senhores de gravata e boina, as prostitutas tristes, as crianças correndo soltas, tudo isso aconteceu e as festas também. A coisa deu tão certo que os ambulantes de isopor continuaram vendendo garrafinhas de cerveja Heineken por oito reais, sem pechincha, até o fim dos tempos.

Nessas horas até um cético sorumbático e misantropo como eu bota fé em certa vocação cosmopolita na cidade de São Paulo e, mais que isso, numa possibilidade de diálogo para esta nação de duzentos milhões de brasileiros alheios ao que seja o Brasil. Onde o povo, para esclarecidos da esquerda à direita, é sempre esse estrangeiro que nos surpreende.

Nós que nos comovemos com fechamento de livraria e bala Juquinha, mas estranhamos o luto pelo artista popular. Nós que saímos pela Virada Cultural observando tudo com a expressão antropológica de velhas francesas em excursão a uma colônia africana, vestindo chapéus de safari e uma echarpe.

Ou talvez fantasiados com um agasalho esportivo com capuz.


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