Folha de S. Paulo


Pedaço de mim

"Oh, pedaço de mim / Oh, metade amputada de mim / Leva o que há de ti / Que a saudade dói latejada / É assim como uma fisgada / No membro que já perdi."

É o que a minha Zizi Possi interior cantarola fininho enquanto, pela quinta vez num espaço de uma hora, procuro o meu celular no bolso descendo a Fradique em direção ao metrô. A dor do membro fantasma, aquela que pacientes sentem em braços amputados –e ex-amantes em algum lugar entre o coração e o estômago– manifesta-se em mim como se eu fosse um ciborgue.

Há quatro dias perdi meu iPhone numa dessas maratonas etílicas com duvidosas escalas entre o Cupido e o Parlapatões. Perdi ou fui roubado, pouco importa. Fato é que, desde então, minha existência se transformou numa coleção de sobressaltos.

Saio de casa. Todo um mundo pulsante de notícias, imagens brilhantes, solicitações e mensagens urgentes é arrancado da minha consciência assim que desligo o computador e fecho a porta. Ando pela rua com o pensamento manco, desacostumado com tamanho silêncio. O que acontecerá enquanto estou fora? Minhas ansiedades são respondidas com o eco de uma planície indiferente e sem paisagem. Vácuo, branco, nihil novi.

O sinal fecha para os pedestres e me vejo sem saber o que fazer com as mãos. O mesmo acontece em qualquer pausa de conversa, espera no restaurante, ponto de ônibus ou vagão de metro. Entro na composição debaixo da terra e observo com inveja os outros seres humanos manipulando seus smartphones, absortos entre fones de ouvido e uma pequena tela de cristal líquido a oferecer uma torrente inesgotável de pequenas recompensas. Eu, excluído, já faço parte de uma outra categoria. E entendo o ladrão. Seria capaz de abraçá-lo, solidário.

Não controlo meus pensamentos. Cogito correr agora mesmo comprar um telefone roubado baratinho ali no chão do Viaduto Santa Efigênia (sim, agora penso, convicto, fui roubado, talvez até ache o meu!) mas, entre a covardia e um impulso de ética, logo abandono a ideia e me distraio com a cidade de São Paulo.

Trata-se de um tipo de distração muito concentrada. E vejo um pombo gordo no arame farpado de um prédio tumular, uma moça equilibrando o violão na faixa do sinal vermelho, um arranjo geométrico de cabos entre dois postes contra o céu, uma poça de esgoto a refletir o edifício luxuoso do lado do sobrado. Busco o telefone para registrar o momento e pendurá-lo no meu Instagram. Nada.

E para que serve tudo isso se não posso tirar fotografias e me gabar para desconhecidos? Ou melhor, guardá-las e nunca mais ver?

Passado o primeiro episódio de abstinência, começo a pensar no livro que estou editando. Depois de semanas improdutivas, tenho ideias simultâneas sobre diferentes capítulos num soluço desenfreado de frases inteiras. Começo a fazer planos para o futuro, enxergo possibilidades de trabalho, traço estratégias de fuga. Minhas cadeias de pensamento são longas e cada vez mais complexas, flutuo sobre o asfalto como se estivesse entupido de nootrópicos, marcho offline entre os transeuntes, agora já enxergo o caminho sem aplicativos ou mapas, e este caminho é o da iluminação: sou tomado por um despertar que descortina as coxias do teatro e arranca dos prédios suas fachadas. Um satori entre as árvores da Praça da República.

Logo a compreensão dá lugar a mania, o pânico, a fisgada no bolso vazio, o terremoto invisível, o incêndio sem fuga, o ar rarefeito: eu preciso conferir o meu e-mail. Corro para casa onde descubro que ninguém escreveu, o dinheiro ainda não saiu, aquela notícia não chegou.

Acaba a tarde inútil, abro as janelas e vejo o engarrafamento lá embaixo. Dentro dos carros, eles olham seus celulares tentando esquecer alguma coisa.


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