Folha de S. Paulo


Ser novinha

A novinha sabe que não vive em um píncaro azulado, mas sabe também que seu sorriso abre espaço na cidade fria. Ainda assim, não se dobrará ao que a rua espera dela. A novinha pinta ou não o rosto, arruma ou não os cabelos, depila ou não as axilas: isso dependerá de um arranjo complexo e volátil de valores estéticos e políticos mui particulares. E também, vá lá, do pensamento desatado, dos humores imponderáveis de novinha. Mostrará as pernas à tarde não para os homens ou para as mulheres, mas para que as próprias pernas conheçam o vento.

Trabalha à tarde em casa, tira duas profundas sonecas de noventa minutos por dia, fuma um baseado antes de cada refeição. Nos intervalos, a novinha rola a tela do computador, ultrapassa argumentos e a falácia do dia até decidir contemplar o teto e tentar pensar em nada. Mas a novinha nunca consegue: seu tempo passa lentamente, tudo tem a maior importância, os menores acontecimentos transbordam de sentido. E aí a novinha não pensa em coisas ou cores, como alguém poderia julgar, mas sim lê o mundo com olhos radiológicos de espiã. A novinha dá o passo para fora da fotografia, ela e sua inteligência satelital, vendo de dentro e de longe.

A novinha usa óculos redondos que costuma perder. Quando não consegue enxergar o número do ônibus, pede ajuda no ponto a desconhecidos de rosto borrado. O homem de terno a caminho do escritório responde a novinha com assombro: ela é macia demais, confortável demais dentro de si mesma. Ela é senhora do tempo, ele jamais será.

Ela fez balé quando criança e tem a elasticidade de uma contorcionista. Nunca comprou um disco e só ouve música pelo youtube. Vai a poucas festas, orgulha-se de ser reclusa, mas quando sai fica até a manhã e beija meia-dúzia. É francesa, é carioca e será de qualquer lugar pra onde for. Não gosta de falar ao telefone, comunica-se por textos curtos enviados por um celular velho e prefere conversar com uma pessoa de cada vez, grandes grupos a exasperam.

A novinha está de saco cheio da moda, reclama da superficialidade das pessoas, pensa em fugir da cidade e ter uma casa no mato, um lance meio hippie meio harebô. A novinha gosta de transar com homens e mulheres, mas acha as moças da sua idade ansiosas e os homens meio bobos.

Frequentemente fala absurdos. Ontem disse, do nada, no meio da tarde: "como eu gostaria de ter um pau!". Às vezes ri sozinha, mas também pode trancar a cara num muxoxo sem motivo, passar recados ininteligíveis, contorcer os dedos dos pés e balbuciar coisas em francês enquanto dorme. A novinha dormindo é como uma estátua de anjo que, olhando melhor, você percebe ser um anjo mesmo, vivo atrás do mármore.

A novinha tem temperamento artístico e é artista - uma raridade. Sua nonchalance é antídoto contra a presunção dos salões periféricos. A indiferença da novinha ao atravessar a pista de dança, da porta do banheiro a cabine do dj, é flechada nos corações de homens e mulheres com os sonhos maltratados pela vida. E, caso você esteja em outro núcleo da trama, não é que a novinha não esteja nem aí pra você - ela simplesmente vibra em outra frequência. Surpreende que você consiga vê-la.

Flutuando com a elegância dos despreocupados, indiferente a estranheza da vida sobre a terra, a novinha é como se não fosse - quase cai do galho de tão amadurecida. Mas o juízo da novinha é não ter juízo e este ela não perderá.


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