Folha de S. Paulo


Turnê mundial de karaokê

Valentina Fraiz/Editoria de Arte/Folhapress

O karaokê é um esporte noturno que costuma (des)equilibrar-se na fronteira do insuportável com o sublime, a depender do seu estado etílico, generosidade com estranhos e sensibilidade auditiva. De acordo com a tradição asiática, é o primeiro encontro perfeito, no qual se pode julgar gosto musical, desenvoltura ao microfone e indicativos mais sutis de harmonia entre o futuro casal. Como adepto das modalidades mais radicais de playback, listo aqui algumas das casas de destaque pelo mundo, na esperança de que você me acompanhe numa delas ou, caso eu tenha sorte, em todas na nossa primeira turnê mundial.

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PARIS No porão oculto de um bar inexpressivo do Marais, depois de uma escada estreita, está o palco do L'Enchanteur (15, Rue Michel le Comte). Ao contrário do que seu nome (o sedutor) indica, trata-se de um dos karaokês mais hostis do mundo. Ainda assim, sempre volto, com o coração acelerado dos apaixonados à espera na porta do secundário. O público LGBT dedica-se a "chanson française-farofa" dos anos 80, hinos por nós desconhecidos e que serão cantados em uníssono. O clima é de festa entre amigos –o problema aqui é fazê-los. Após longa espera, nossas performances serão olimpicamente ignoradas pelos locais. O silêncio
sepulcral após a última nota, a bebida cara e vagabunda, os esgares de desprezo: nada nos fará desistir. Paris é sobre terreno e conquista.

BERLIM O turista e seus guias falarão do já tradicional karaokê a céu aberto no Mauerpark organizado pelo irlandês Joe Hatchiban aos domingos, com o usual desfile de bizarrices, britânicos bêbados e público de 3.000 pessoas ao redor da bicicleta com caixas de som. O meu palco de cantoria em Berlim é mais discreto, mas não menos espetacular. Trata-se do Monster Ronson's Ichiban Karaoke (Warschauer Strasse 34) em Friedrichshain, atravessando a rua na saída do metrô. Cavernoso, com oito cabines homenageando estrelas mortas do rock, um palco principal com um metro de altura e uma pista de dança, a casa de Ron Rineck é imprevisível. Já participei de batalhas temáticas sobre David Bowie com desconhecidos e me internei com amigos num cubículo até sete da manhã. O anexo azulejado pode ser um banheirão obscuro ou a boate mais selvagem da cidade conforme sua sorte e o dia da semana.

BANCOC Não lembro o endereço. Teremos que procurar por uma travessa da Silom Road numa das extremidades de um dos centros de comércio sexual da capital tailandesa, Patpong, onde camelôs vendem vibradores ao lado de suvenires e há o desfile usual de moças em oferta. Depois de comer um pad thai na calçada, ao lado de um grupo de "ladyboys" que compravam pássaros engaiolados de um vendedor de rua apenas para soltá-los (dá sorte), segui o som de uma cantoria até virar a esquina por trás do pequeno templo hindu. Mesas de plástico, isopores com cerveja gelada e um mestre de cerimônias de gênero indefinido com uns 70 anos. Cantei uma do Elton John e a senhor@ aterrissou no meu colo em exótica coreografia. Fomos ovacionados.

RIO DE JANEIRO A feira de São Cristóvão incluiu no seu rol de tradições nordestinas a arte da cantoria eletrônica –e o número de microfones só aumenta. Hoje há pelo menos duas dúzias de pequenos bares com máquinas de karaokê. A oferta de cacofonia entre os corredores faz com que seja comum um grupo de amigos sequestrar um estabelecimento e impor um regime de pagode noventista por horas. Fuja. E, após a entrada principal, pegue a primeira rua curva à esquerda. Procure a barraca Já Disse (rua Ceará, D10) cuja fila e cujo atendimento são organizados com diligência pela dona Vila, organizadora e chefe de Estado do estabelecimento –e cantora, também. Para modalidades mais selvagens, vá à Lapa e procure dois clássicos da madrugada: Sal & Pimenta (avenida Mem de Sá, 120) e Buraco da Lacraia (rua André Cavalcânti, 58).


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