Folha de S. Paulo


Onde nunca anoitece

Vim à Suécia em busca de luz. No verão, há partes do país em que o sol nunca se põe. Em Estocolmo, temos algo parecido com um lusco-fusco, mas nunca anoitece completamente. O que se vê é uma "hora azul" que se cristaliza às 11 da noite e, a partir de uma da madrugada, transforma-se num muito longo amanhecer.

O crepúsculo parece infinito. A sensação de fotograma parado soma-se ao estranhamento de termos a luz artificial dos postes e neons sob um céu em tons claros. A transição entre o dia e a noite deixa de ser uma passagem e transforma-se num estado, um novo centro, uma nova âncora de luz.

No céu escandinavo do equinócio de verão, o tempo congela-se na fronteira entre o que é e o que deixou de ser. Conseguimos vivenciar o entre –entre o que se viveu e o que não se viveu, o que se teve e perdeu– de forma física. Como se pudéssemos prolongar o momento exato em que deixamos de ser o que éramos até que possamos realmente vivê-lo sabendo disso.

Talvez seja a manifestação visual desse estado de angústia que faça com que eu e toda a nação sueca precisemos beber como vikings existencialistas nessa época do ano.

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Caminho pela madrugada –o bom sono é outro daqueles hábitos dos seres humanos que me abandonou há tempos– e vejo gaivotas enlouquecidas dando rasantes pelas avenidas desertas de uma grande cidade. Elas pousam nos sinais piscando amarelo e emparelham bêbadas comigo pela calçada. Guincham para mim, e eu respondo.

Em algum momento dessa coisa que não é noite ou dia, tentarei dormir. E, mesmo usando cortina e máscara, passarei a noite em vigília. Desde a infância não tenho sonhos lúcidos tão cristalinos.

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Se muitas vezes pesadelos surgem de um trauma, o contrário também é comum: o momento do trauma que soa como um pesadelo até que nos confunda. É real a tragédia ou a estamos sonhando? Que tipo de pesadelo é esse que continua quando acordamos? Há sempre o tema que se repete no fundo dos nossos pensamentos: isso não pode estar acontecendo.

Sobre um dos muitos canais de Estocolmo, onde há uma praia que dizem chamar Copacabana à beira de um cais, vemos uma ponte iluminada. Numa ladeira ao lado, mais próximo às estruturas do gigante de concreto, há uma casa de madeira no meio de algo semelhante a um pasto. Aquela casa debaixo da ponte, perto de uma praia, não deveria estar ali. "É simplesmente errado", eu digo, e a mulher sueca ri. Abrimos o portão e caminhamos ouvindo o som dos nosso passos no cascalho. Paramos em frente à casa. No segundo andar, vemos uma luminária acesa por trás da cortina vermelha sob o céu da meia-noite em tons de azul. A luz do céu, a luz da ponte, a luz por trás da cortina vermelha: é um pesadelo.

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Um dos meus livros preferidos é "Inferno", de Strindberg, um diário onde o escritor sueco relata as vozes que viajaram daqui para perseguí-lo em hotéis baratos na Paris do crepúsculo do século 19. Nos tempos sombrios em que seguimos vivendo, essas vozes são tão reais quanto as que nos visitam em sonhos. Pelo menos ainda podemos brindar a elas em salões vermelhos como o Berns Salonger, o "Röda Rummet" do romance sueco de mesmo nome.


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