Folha de S. Paulo


Três pistas de dança

Uma pista de dança é mais que um grupo de seres humanos movendo-se ao som de música. É a arquitetura do salão, o rito do convite, o código da roupa, a ética geométrica das linhas que não se cruzam –e a interação entre todos esses fatores no quadrilátero iluminado onde os habitués bailam e estrangeiros esbarram em regras não escritas. Aqui, três célebres pistas de dança que ultrapassam o baile.

Buenos Aires – O centenário edifício art noveau da Confiteria Ideal abriga uma milonga tradicional no segundo andar, depois da escadaria castigada pelos passos de gerações de tangueros. Fuja dos shows para gringos e procure os horários frequentados pelos locais –há milongas menos óbvias que a Ideal na cidade, mas nenhuma delas tem esse salão espetacular. Ali, entre colunas de mármore e luminárias de cristal, casais de todas as idades rodopiarão em sentido anti-horário até o fim dos tempos. Sente numa das mesas e peça uma cerveja enquanto observa o silencioso convite que inicia a dança –o célebre "el cabeceo", um leve aceno que o homem dá com a cabeça depois de uma troca de olhares, ainda distante da dama sentada. Entende-se o delicado acordo de cumplicidade. É uma dança grave, mas a metafísica nunca teve tanto coração. O tango reúne a sensualidade dos primeiros encontros e a tragédia do último no mesmo passo –não há maior intimidade possível para um casal de desconhecidos.

Saigon – "Apocalipse Now" é um nome de péssimo gosto para batizar qualquer estabelecimento no Vietnã, mas talvez seja mesmo adequado para essa boate no Distrito 1 da cidade, sede de consulados e edifícios governamentais da república socialista. Por trás da fachada de pedras de jardim, turistas, malandros e belas vietnamitas bebem drinques caros e vagabundos enquanto dançam poperô radiofônico ocidental. Seria um inferninho obscuro igual a milhares de outros pelo planeta, mas aqui uma dúzia de seguranças armados e uniformizados vigia a ação sob as luzes estroboscópicas da pista de dança –plantados dentro dela. São como totens com expressão ambígua no rosto, flutuando imóveis enquanto o baile segue ao redor. Todos os dias, o DJ fecha a noite tocando "The End", do Doors, trilha sonora do filme que batiza o lugar. É triste o purgatório, mas continuamos dançando –eu lembrava do Rio de Janeiro o tempo todo. Arrisque-se: 2C Thi Sach, cidade de Ho Chi Minh. (Para outra boate na Indochina com nome correlato, vá à "The Heart of Darkness" em Phnom Penh, capital do Camboja.)

Berlim – Se há um lugar na Europa onde brasileiros são mais barrados que no aeroporto de Barajas, em Madri, esse é o Berghain, o maior clube de Berlim cuja "door policy" é tão legendária quanto o seu sistema de som. A boate-monumento de música eletrônica funciona numa antiga estação de energia elétrica em Friedrichshain onde, por cerca de € 10 (R$ 30,20), você ganha um carimbo no pulso depois da aprovação de um porteiro muito, muito mau. Nos bons finais de semana aquilo é um passaporte, já que o lugar abre sexta e só fecha domingo. Mais de uma vez fui dormir em casa e voltei de dia, quando, nos crescendos de deep house, o Panorama Bar abre as janelas e deixa o sol iluminar os zumbis do MDMA. Caso você consiga entrar, não esqueça que tudo é uma aventura no Berghain –especialmente ir ao banheiro.


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