Folha de S. Paulo


A menina dos cinco colares

Foi mais ou menos assim: às 5h30, a mulher me catucou de leve na cama. "Amor, acho que temos que ir para a maternidade, estou com as dores de todo este mundo."

Daquele momento em diante, agarrei firme na mão de nossa senhora da bicicletinha para não largar tão cedo, por um tempo que ainda não acabou. Saltei da cama em velocidade olímpica e nunca antes havia ajeitado a calça jeans com tamanha destreza.

Equilibrei no colo as malas -eram duas, de peso médio-, joguei tudo dentro do carro e voltei para poder acudir como podia minha grávida e minha Elis, que se sacudia no ventre, doida para conhecer de perto esta crise econômica dos diabos.

Ralei a bunda do carro na parede do prédio, alonguei um sinal amarelo, buzinei para acordar um bêbado birutando na rua e chegamos à maternidade esbaforidos. Evidentemente, demoraram alguns instantes para sacar que não era eu, mas, sim, minha mulher quem deveria receber atenção imediata.

Partimos os dois, devidamente montados em cadeiras de rodas, para a emergência. Minha mulher, até então, havia tido a gestação perfeita, passando com louvor em todas as etapas da intrigante maratona de botar menino neste planeta.

Do sonho todo azulejado de encantos de ver minha bebê nascer ao som de um urro de libertação conjunto com a mamãe à aguda angústia de me tornar um pai de UTI, com todas as tonalidades desse drama, foi um relance.

Minha menina explodiu naturalmente de dentro da mãe adornada com o cordão umbilical de uma maneira rara: circundando o pescoço por cinco vezes. Naquele justo instante, atônito, tirei da gaveta de minhas memórias jornalísticas uma reportagem que havia feito sobre a necessidade de as salas de parto seguirem protocolo severo de procedimentos para a retomada de respiração de bebês recém-nascidos. Gosto de pensar que isso me foi uma preparação, coisa do destino.

Fiquei entre acalmar o desespero felino de meu amor e fitar a equipe médica, com pediatra neonatal, inclusive (querem acabar com essa obrigação, atenção!), que chamava de volta minha filha.

Embora a tensão ganhasse a sala, a fúria das ações devidamente treinadas, culminando com a colocação de um tubo para respiração na minha pequena, afastava de mim, em algum grau, a convicção de que enfrentaríamos novamente em família as agruras de uma fatalidade, de uma deficiência grave em decorrência da falta de oxigenação ou de qualquer outro desarranjo de normalidades.

Dali para a frente, papai e mamãe teríamos de olhar por uns dias para o berço vazio, consolar os familiares e amigos da ausência da convidada principal da festa e ainda embalar uma rotina regrada para conseguirmos ser acalentados pelo brilho, pela pimenta e pela doçura de nossa menina, que, em poucas horas de recuperação, e já totalmente fora de risco, poderia ter sobrenome espoleta.

Queria ter escrito um texto de pura paixão por minha bebê, cheio de rococós e de breguices, mas Elis nasceu reforçando em mim o que batuco há tempos neste espaço: a vida rodopia totalmente até em suaves curvas; as dores mais ardidas se atenuam quando se dá amplitude ao umbigo; fé, coragem, conhecimento e atitude libertam e salvam.


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