Folha de S. Paulo


A essência das coisas

SÃO PAULO - Se eu fosse mulher, tivesse engravidado há pouco e descobrisse ter sido infectado pelo vírus da zika, não hesitaria nem por um instante em abortar a gestação. Como sou um sujeito remediado, poderia fazê-lo totalmente dentro da lei, viajando para algum país onde o procedimento é lícito.

É preciso, porém, enfatizar que essa seria a minha opção. Não creio que ela possa ser universalizada, porque diferentes pessoas têm diferentes sentimentos em relação ao aborto. E, ao contrário do que sugerem nossas intuições mais viscerais, essa não é uma questão na qual exista um certo e um errado absolutos.

O problema de base é que somos uma espécie naturalmente religiosa: acreditamos em essências. Isso não é de todo mal. O essencialismo, isto é, a tendência que temos de enxergar uma natureza oculta nas coisas, é útil para a sobrevivência. Nossa obsessão para com substâncias nos torna observadores detalhistas, que tentam ler em sinais externos a verdadeira essência dos objetos. Isso ajuda a não confundir plantas venenosas com saladas e fitoterápicos. Pitadas de essencialismo são ingredientes psicológicos da ciência e da filosofia. Há, porém, efeitos adversos. Podemos pôr na conta do essencialismo fenômenos sociais menos nobres, como o racismo e a superstição.

Voltando ao aborto, pessoas mais afeitas ao essencialismo consideram o embrião, "ab origine", como uma vida humana, enquanto outros, nos quais esse pendor não é tão acentuado, veem o zigoto como um amontoado de células, que só adquirirá paulatinamente as características que o tornarão humano. Para os primeiros, o aborto é indistinguível do assassinato; para os últimos, não carrega um significado moral muito especial.

A solução prática é deixar que cada qual siga seus instintos, por mais cruéis que pareçam as decisões resultantes. O essencialismo, afinal, é muito mais um fenômeno psicológico que um dado da realidade.


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