Folha de S. Paulo


Tortura voluntária

SÃO PAULO - Em uma de suas sempre informativas colunas, Ronaldo Lemos destacou recentemente o que chamou de "lado negro" da internet das coisas. São inovações como o Safeguard Alarm, que dispara uma buzina quando o sujeito sai do toalete sem lavar as mãos, e o Pavlok, o bracelete com o qual o usuário dá choques em si mesmo sempre que viola resoluções de Ano Novo, como fumar ou comer doces.

De fato, basta um pouco de imaginação para perceber como esses instrumentos nos levariam às piores distopias se instalados à nossa revelia. Causa-me especial arrepio a perspectiva de que se criem "corretores automáticos", que suprimiriam da internet todos os discursos de ódio. Seria, por óbvio, a morte da liberdade.

A situação muda de figura, entretanto, quando o uso desses, vá lá, superegos portáteis é voluntário e não imposto por terceiros. O problema de base é nossa arquitetura cerebral, que comporta várias ordens de desejo. O viciado talvez seja o melhor exemplo. Muitas vezes ele quer ao mesmo tempo livrar-se da dependência e fazer uso de seu entorpecente favorito. Qual dos dois desejos vai prevalecer é algo que depende de uma série de fatores situacionais e disposicionais que psicólogos e psiquiatras se esforçam para mapear. É justamente aí que apetrechos no estilo do Pavlok podem ser úteis.

A rigor, nem constituem novidade. Um tratamento para alcoolismo usado desde os anos 50 é o dissulfiram, droga que faz com que o paciente sofra fortes e desagradáveis reações físicas se beber enquanto a estiver tomando. Na mesma linha vão as dietas nos quais o sujeito se compromete publicamente a perder tantos quilos no prazo tal. O medo da censura social, mesmo que apenas imaginada, já facilita a adesão ao regime.

Gostemos ou não, nossas mentes já operam num cacofônico sistema em que diferentes módulos cerebrais reprimem uns aos outros para decidir qual de nossos lados triunfará.


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