Folha de S. Paulo


Mentiras

Há uma espécie de código de conduta a ser seguido por quem pretende mentir, nas relações cotidianas em geral e na política em particular.

A mentira deve guardar alguma relação com os fatos (a célebre meia verdade), ser verossímil ou merecer o benefício da dúvida; ser indolor; não afrontar o senso comum; não exigir explicações intrincadas; e, em especial, corresponder ao que a audiência quer ouvir.

Um exemplo clássico de fabulação bem-sucedida é a "Carta ao Povo Brasileiro", lançada na primeira campanha vitoriosa de Lula ao Palácio do Planalto. Ali se gastava a primeira página com o desejo de "mudar para valer" —e as quatro páginas restantes com os compromissos de equilibrar o Orçamento, controlar a inflação e manter os pagamentos da dívida pública.

A militância entendeu que se tratava de mero recuo tático nas promessas petistas de redenção social; o eleitorado aprovou a guinada ao centro do ex-sindicalista; o mercado financeiro leu com gosto o termo "superavit primário" num documento supostamente endereçado ao povo.

Cada um acreditou no que quis, e Lula pôde superar uma crise econômica agravada por sua própria ascensão eleitoral. Em algum momento, mas não ao mesmo tempo, todos acabaram atendidos e enganados.
Dilma Rousseff se reelegeu dizendo o que a audiência desejava escutar —que, depois de anos de gastança, não seria necessário um doloroso ajuste dos juros e dos programas sociais. Mas a narrativa (ótimo eufemismo, infelizmente desgastado pelo excesso de uso) deixou de ser verossímil e indolor, e a petista perdeu o benefício da dúvida.

Chegou a vez de uma velha e educativa lorota econômica: a de que o Orçamento do governo deve ser gerido como um orçamento doméstico, a exemplo da dona de casa cônscia de que não pode gastar além de suas receitas.

A mais espartana das mães de família sabe que, por vezes, vale a pena se endividar —isto é, gastar acima da renda— para ampliar o bem-estar da prole, com a compra de uma casa ou um carro.

A dívida pública, ademais, difere essencialmente da dívida doméstica. Esta precisa ser paga, porque os devedores são mortais e não podem deixar heranças malditas a seus filhos. Já Estados nacionais, duradouros, têm a mítica capacidade de dever para sempre.

Administrar dívidas eternas e impagáveis requer, decerto, enredos sofisticados. Os cidadãos que, direta ou indiretamente, aplicam sua poupança em títulos do governo precisam estar seguros da solidez do negócio; do contrário, correrão em manada para reaver um dinheiro que não existe.

Não espanta a enorme boa vontade com que o mercado aguarda o programa de austeridade do governo Michel Temer. Credores, como a palavra evidencia, precisam crer.


Endereço da página: