Ilustração Guazzelli |
Hoje, ainda dentro da campanha #AgoraÉQueSãoElas, passo a palavra pra quem entende do assunto. Com vocês, Noemi Jaffe *:
- Os meninos riram e disseram que eu não podia ter sentado no colo do Alexandre, no cinema.
- A Sandra disse que, na rua da Graça, havia mulheres que vendiam suas calcinhas por cinco cruzeiros e que os meninos da classe iam lá comprar.
- Quando eu sangrei, no acampamento, me assustei muito, mas a Noêmia disse que isso era normal entre as mulheres.
- Meu pai dizia que, num casamento, a mulher deve ser sábia e fazer com que o homem acredite que ela é submissa.
- O Walter fazia mágicas e pediu para eu levantar a blusa. Se eu não levantasse, ele me transformaria num bicho feio.
- A Carla só descobriu que estava grávida no quinto mês de gravidez. O rapaz de quem ela engravidou tinha sumido.
- A Bernardete foi estuprada no caminho de casa. Quando chegou, teve vergonha de contar para a mãe.
- A Cris disse para a Taís que era melhor elas se calarem, porque ninguém acreditaria nelas e elas ainda poderiam perder o emprego.
- O delegado Mário perguntou para a Suzana se ela sempre saía daquele jeito na rua e que era para ela se preparar, se não estivesse disposta a mudar de comportamento.
- A filha da minha vizinha, Gláucia, foi ameaçada com uma faca e saiu correndo, pedindo ajuda. O moço que passou achou que ela fosse meio louca.
- A Virginia disse que a uma mulher bastariam um quarto e 50 libras, coisas impensáveis para uma mulher no início do século 20, para que ela pudesse se tornar uma escritora.
- O Flávio disse a Joana que ele já fazia muito: afinal, levantava todas as noites para trocar a fralda do bebê.
- No parque, a Claudia me recriminou por eu amamentar em público. Disse que tudo bem, tudo bem, mas que muito bonito não era, eu tinha de concordar.
- Disseram que o tal do Saul, o estuprador, até que foi bonzinho, porque falou que se ela ficasse calada ele não lhe faria mal. Ela concordou.
- Ele era diferente do outro, o Mário, que gostava de machucar mesmo.
- Você viu que a Selma engravidou de um estuprador e tirou o bebê? Deve ser conversa dela.
- A personagem da Clarice se matou quando descobriu que o dente da frente tinha quebrado. A outra se prometeu, mas não cumpriu, que não prepararia mais o jantar para o marido todos os dias.
- O Alex brigou com a Gisela, porque sempre faltava alguma coisa na mesa.
- O Milan disse que, se na época de Dostoiévski o culpado sempre procurava a punição, na época de Kafka a punição sempre procura os culpados.
- O Kafka, no romance "O Processo", escreveu que o personagem K precisava se defender de um crime que ele mesmo desconhecia.
- A Madalena chorava e sua mãe consolava, dizendo assim: "Pobre não tem valor; pobre é sofredor, e quem ajuda é o senhor do Bonfim".
- O deputado Cunha é líder religioso. Ele tem uma conta na Suíça. Ele encaminhou um projeto de lei para dificultar o acesso ao aborto por estupro, legal no país. Com esse projeto as mulheres estupradas, para serem atendidas no SUS, precisarão passar por um exame de corpo de delito.
*Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária -escreveu "Írisz: as orquídeas" (Companhia das Letras, 2015), entre outros. Ela integra a iniciativa #AgoraÉQueSãoElas, em que mulheres escrevem
no lugar de colunistas homens a convite deles.