Folha de S. Paulo


Francis Mallmann

Não gosto de falar do que não entendo e, como não entendo nada de comida, os chefs e os críticos de gastronomia que eventualmente leiam esta coluna podem ficar sossegados ao reconhecer no título o nome do chef patagônico.

Não vou tratar de sua cozinha premiada. Só quero não deixar passar em branco a impressão que sua figura provocou em mim. (Também não entendo nada de seres humanos, mas às vezes fico louco por alguns exemplares da espécie e, quando isso ocorre, sinto uma vontade incontrolável de escrever a respeito.)

Foi um amigo que me deu a dica por WhatsApp: "Veja no Netflix o programa sobre Francis Mallmann da série Chef's Table. Vc vai pirar". Ele estava certo.

Francis Mallmann, de quem até então, na minha cada vez mais vasta ignorância, nunca tinha ouvido falar, é mais poeta que muito neguinho que anda publicando poesia por aí. Ele viveu; ele não duvida que está vivo; seu discurso é apaixonado e dele transborda uma sabedoria muito particular.

Não aquela coisa chata de dizer pros mais jovens (morrendo de inveja de sua juventude, claro): o mundo é cruel, seus sonhos são ingênuos, eu também tive sonhos assim e eles foram massacrados. Com Mallmann esse papo não rola. Você vê a coragem e a franqueza com que ele faz suas escolhas —seus erros e acertos, sua capacidade de arriscar— e você fatalmente se pergunta se ainda está no caminho verdadeiro ou é mais um que se acomodou no caminho fácil.

Aos 59 anos, só não parece estar no auge de sua existência porque é uma dessas pessoas que estão sempre dispostas a realizar o próximo gesto, talvez decisivo; que desejam o futuro porque amam o presente e aceitam o passado porque ele também já foi o agora.

Há como que uma liberdade flutuante em torno desse homem de cabelos brancos desgrenhados que não tira o chapéu dandino de gaúcho que morou em Paris e adora rock'n'roll.

Seus cordeiros abertos em espetos à beira de um fogo aceso na neve, suas trutas cobertas de argila e assadas na brasa de um forno à lenha, seus legumes enterrados em covas seguindo uma antiga tradição dos Andes são como as grandes imagens dos grandes poemas e, pela crueza e sofisticação —ou melhor, pela crueza consciente, espécie de quinta-essência de uma arte desenvolvida ao longo de meio século—, lembram os últimos discos de Bob Dylan, em que o genial letrista gane seus versos feito o espantalho em chamas de um milharal metafísico. Se Dylan cozinhasse, faria coisas assim.

A certa altura do documentário ele diz: "Sou um cozinheiro que quer transmitir um estilo de vida. Sempre cozinho em lugares selvagens, desertos, com fogueiras. Então minha mensagem é esta: levante da cadeira, do sofá, do escritório e SAIA".

Por que não —hipócrita leitor, meu igual, meu irmão?


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