Folha de S. Paulo


Rimbaudelairianas

Pergunta

Nos tornamos adultos quando começamos a preferir Baudelaire a Rimbaud? Não.

Tsunami

Um tsunami pode estragar um churrasco. Vem por trás do quintal e engole tudo. Não sobra um copo sobre a mesa. Os amigos gritam enquanto sobem a escada. Alguém lamenta a festa interrompida.

Mas quando as águas baixaram as lebres voltaram a recitar sua oração ao arco-íris através da teia de aranha, e a condessa russa, transformada em antílope, correu pelo campo destroçado –com sua linda camisa azul e a mão esquerda.

Sopa

No começo da tarde fiz sopa: uma cenoura, um chuchu, duas batatas, uma batata-doce, um pedaço de abóbora, um repolho, duas cebolas, seis dentes de alho, coxão-duro em cubos, um fio de azeite, pimenta-do-reino, dedo-de-moça e sal. Deu mais de 20 porções. Guardei um pouco pra tomar à noite e congelei o resto. Depois escrevi um poema que não me agradou, li três contos contemporâneos, um pior que o outro, e respondi e-mails de trabalho. Só então pude abrir a janela, puxar a poltrona pra perto dela, me servir de uma dose de rum sem gelo e olhar livremente as nuvens.

Bondade

Quando você era insignificante, eles te tratavam bem. Quando você disse "sou livre", eles passaram a te tratar menos bem. Mas, quando viram você e a liberdade juntos, eles não se aguentaram —e botaram perucas cor-de-rosa e te disseram tudo o que queriam ter dito antes, quando você era tímido e frágil e eles tinham medo de te machucar.

Solidão

Resolve-se, em parte, encontrando a ala certa da Grande Enfermaria.

Dylan

De Bob Dylan posso dizer o mesmo que uma amiga quando perguntavam se ela gostava de "O Poderoso Chefão":

– Não é que eu gosto –dizia. – Eu concordo.

Esperança

Essa noite, num dos piores pesadelos da minha vida, de que participavam porcos voadores num cinema 3D, um bebê deformado, que era o Demônio, uma mãe libidinosa e depois louca, que descobria que tinha outros 30 filhos espalhados pelo mundo e desde então não conseguia mais me amar, um pai estranho e depois perdido, que participava de rituais de tortura com intenções sexuais ambíguas, um amigo traidor, que seduzia minha mãe, mas também um amigo que tentava me salvar no final (curiosamente o amigo que na vida real eu traí), estradas perigosas, uma cidade do Rio Grande do Sul cujas casas eram armários de cozinha gigantescos, de onde fugi no carro do meu amigo (sua tentativa de me salvar), correndo da minha mãe, abandonando-a na estrada de terra empoeirada, deslizando pela ladeira de uma das montanhas do planeta, que já não era a Terra, numa caixa de papelão (ainda o carro do meu amigo), à maneira dos turistas nas dunas de Natal, nesse sonho, minha analista, que quase não fala, falou:

– Quem perdeu a esperança tem uma última chance de recuperá-la. Essa chance pode vir ou não. Mas só vem uma vez. Depois nunca mais.

Ilustração Guazzelli

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