Folha de S. Paulo


Seis

MACA

Assistindo aos jogos da Copa, entendi que, dos jogadores de futebol, não invejo nem o corpo atlético, nem o dinheiro, nem a fama. Mas adoraria ter em casa uma equipe médica rápida e eficiente como a que eles têm em campo.

Uma dor no ombro durante a escrita de uma crônica, por exemplo, e quatro médicos apareceriam correndo, me jogariam numa maca, me levariam pra fora do escritório e espirrariam uns sprays mágicos nos músculos e nervos. Em segundos eu já estaria de volta, atacando o
teclado do computador com gana, cumprindo o destino, sem perder tempo com consultas médicas e sessões de fisioterapia.

Ilustração Fabricio Corsaletti

*

NAVIO

Seis da manhã. Luzes de um navio ancorado na linha do horizonte. Vento frio. Barulho das ondas. Escrevo de frente pro mar. Bem agasalhado —uma caneca de café fumegante ao lado do laptop conversível. O que meu pai diria se me visse agora?

— Vidão.

*

TÍTULO

"Rua da Padaria" é o título do último livro de Bruna Beber, carioca que há sete anos vive em São Paulo. Simples e concreto, bota o leitor imediatamente dentro do mundo da autora, que é o dele também, um mundo pedestre, mas nem por isso desprovido de poesia.

Quando o li, há um ano, na estante da casa de uma amiga, acreditei que dificilmente encontraria outra combinação de palavras tão certeira pra estampar na capa de um volume de versos. (Fiquei com vontade de roubá-lo pra minha futura coletânea de crônicas. Pra isso eu teria que comprar a edição inteira e queimar. Teria que tirar BB do mapa também. Seria trabalhoso; pensei melhor e desisti.)

Mas é preciso saber esperar. Na semana passada, um amigo que viajou recentemente a Portugal me contou que lá existe uma viela chamada rua dos Cordoeiros, os fabricantes de cordas.

"Rua dos Cordoeiros". Subtítulo: "poemas suicidas".

*

NATURAL

Minha tradução de um poema de Sam Shepard de 1981 que a cada dia se torna mais atual:

vi quase todos os
narizes operados
dentes encapados
e peitos de silicone
que posso suportar

estou voltando para
minha mulher natural

*

SIMPLES

Por e-mail um leitor me informa que percebeu que escrevo poemas sobre temas muito simples, "como linchamento e amor", com vocabulário comum e sintaxe fácil, "tão diferente de um Camões, por exemplo". Quer saber, "se isso não lhe parecer invasivo", se já tive vontade de escrever "algo mais elevado".

Como não é a primeira vez que me perguntam coisas do tipo, respondo publicamente: acho que poemas elevados deveriam ser escritos por pilotos de avião e astronautas. Ou por aeromoças francesas. Pensando bem, só por aeromoças francesas.

*

NAVIO

Seis da manhã. Luzes de um navio ancorado na linha do horizonte. Ancorado na linha do horizonte. Ancorado na linha do horizonte.


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