Folha de S. Paulo


Países árabes não são um livro aberto

Juca Varella/Folhapress
BAGDÁ, IRAQUE, 13-03-2013, 10H00: - *ESPECIAL* *EXCLUSIVO* - GUERRA DO IRAQUE-10 ANOS DEPOIS - Muçulmanas veneram imagem de Nossa Senhora da Salvação, na Igreja Católica de mesmo nome, no bairro de Karrada, em Bagdá. - Em 2010 a igreja foi alvo de ataque terrrorista que matou 55 fiéis, entre eles dois padres. - Depois de 10 anos a reportagem da Folha retornou ao Iraque para fazer um balanço de uma década de pós-guerra, revisitou lugares bombardeados e reeencontrou antigos personagens. - (Foto: Juca Varella/Folhapress, MUNDO)
Muçulmanas veneram imagem de Nossa Senhora da Salvação em Bagdá, no Iraque

Para entender a Colômbia, um bom romance de Gabriel García Márquez. Mia Couto para Moçambique, Saramago para Portugal. Afortunados os países que têm o direito de ser lidos na literatura.

As nações de cultura árabe não parecem estar entre eles. Estados como Síria, Iraque, Líbano e Sudão são apenas folheados no jornal, entre notícias de atentados e sob a constante sugestão de que só podem mesmo ser uns bárbaros, se chegaram à situação em que estão.

Não é que falte literatura. O Brasil ainda carece de interesse por parte de editoras e leitores – que, sem acesso à ficção, não enxergam o conflito sírio como o resultado do medo e do ódio tão bem descritos por Khaled Khalifa em "In Praise of Hatred" (2012), inédito no país.

O Iraque dos leitores é, por sua vez, resumido a "tantas pessoas morreram ontem, em uma explosão no mercado". Ficam de fora o niilismo e o horror representados por Ahmed Saadawi em "Frankenstein in Baghdad" (2013), romance sobre um monstro criado a partir do que sobrou após atentados a bomba. Também inédito.

O Líbano teve mais sorte, talvez pelos laços históricos de sua comunidade no Brasil. O autor Elias Khoury foi traduzido ao português, e a guerra civil libanesa ganha mais e mais sombras em "Yalo" (2008), com o pesadelo e a tortura de uma mesma história recontada inúmeras vezes.

Mas o melhor exemplo é possivelmente o romance "Tempo de Migrar para o Norte" (1966), do sudanês Tayeb Salih. Esse livro, considerado a obra em árabe mais importante do século 20, foi traduzido ao português. Mas esgotou-se, e hoje só existe em sebos (de onde também um dia vai sumir).

Uma oportunidade perdida. Com o texto, Salih capturou em um frasco de papel o líquido que corre nas veias da região. Seu anti-herói, Mustafa Said, é a vítima do colonialismo no Sudão. Mas ele é também o algoz de seu opressor, quando aprende a usar as fantasias orientalistas a seu próprio favor.

Em um trecho, ele seduz uma mulher inglesa contando-lhe sobre seu pitoresco e inexistente vilarejo, onde leões e elefantes caminham entre os nativos. À noite, diz, ele costumava estender a mão e tocar nas águas do rio para acalmar-se e dormir. Mentiras que ressoavam na imaginação dela.

E nuances que hoje nos escapam. Quando povoaram as páginas dos jornais, nos últimos meses, os sudaneses haviam outra vez "migrado para o norte". Dissolvidos entre as multidões de migrantes, em campos de refugiados, eram outros entre tantos — reduzidos todos à mesma história, cruzando países a pé e mares em barquinhos de borracha.

Fez falta que nos lembrássemos de que eles têm, individualmente, histórias complexas para contar. Como Mustafa Said.


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