Folha de S. Paulo


Alegria a fórceps

Ilustração Zé Vicente

Tio Gonçalo subiu no sofá. Quando demos conta, tínhamos o homem em pé, gritando, pisando de sapatos nas almofadas. Fez-se um silêncio. Nossos palpites estancaram diante da cena e os gritos de tio Gonçalo puderam ser ouvidos em alto e bom som:

–Vinhas da Ira! Vinhas da Ira!

Ele estava certo. Era esse o filme. Apesar da vitória, desceu desconcertado. Saíra de si. Não topara a brincadeira, mas não conseguiu deixar na garganta a descoberta do filme difícil.

Tio Gonçalo é um homem sério. Ri pouco, come quieto, vê telejornal e sabe ficar em silêncio como ninguém. Naquele dia, os mais animados venceram a letargia da sala de visitas, propuseram um jogo de mímica e nos deram a chance de conhecer um tio Gonçalo capaz de subir no sofá com os olhos cheios de entusiasmo.

Sempre me lembro dessa história. O homem que vi raptado pela alegria.

De vez em quando, tomo coragem e faço um teste:

–Vamos brincar de mímica?

Recebo olhares que sugerem minha inadequação, é óbvio. Não é fácil instaurar um jogo de mímica no meio de um almoço de família. Pode ser até ofensivo, uma sugestão de que não se está gostando da conversa. Mas, vencida a resistência e formados os primeiros times, é incrível o poder da coisa.

Em pouco tempo, os que torceram o nariz também arriscam os seus palpites, a sala ferve e tios Gonçalos começam a pipocar. É muito impressionante ver um adulto brincar. São capazes de conhecer um inédito estado de alegria. Por que não provocá-lo?

Tenho profunda inveja de alguns homens carecas e barrigudos que ainda conseguem se organizar para um futebolzinho no fim de semana.

Chegam ao lugar, até conversam, mas, depois de alguns minutos, já estão se esgoelando, loucos, levando completamente a sério a coisa inventada. O que é brincar se não ser dono do mundo? Existir sem compromisso com as consequências? Por que o lazer de nossa vida adulta precisa ser tão adulto?

Abandonamos nossa alegria à própria sorte. Deixamos que se vire sozinha com o tanto de coisas que ainda fazemos para intimidá-la.

Diante da crescente seriedade que nos exigem os dias, carece dar-lhe uma ajudinha. Vale a eventual sensação de ridículo. Experimente.

Alegria a fórceps! E, quando se der conta, estará gargalhando.


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