Folha de S. Paulo


Caixa-preta

Exaltada na cozinha, apelei para uma metáfora simplista:

— Você foi sacaneada por um namorado. Arranjou outro que também não te fez feliz. É motivo pra voltar pro primeiro?!

Ilustração Zé Vicente

Eu estava indignada com a confissão de minha tia dizendo que tinha saudade da ditadura militar. Nestes tempos de memória é assustador perceber que algumas pessoas ainda vivem em total ignorância a respeito dessa época terrível da nossa história. Não as culpo. Se a fé não move os montes, o medo é capaz de soterrar montanhas inteiras.

Sou filha do golpe. Nasci em 64, sempre estudei em escola pública e só fui ouvir a palavra tortura pela boca corajosa de um professor do pré-vestibular. Passou ainda muito tempo até que me desse conta do que significavam tantas imagens de Duque de Caxias e Tiradentes esquartejado em meus livros de história. Me sinto enganada por minha escola e por meus austeros professores. Em casa, palavras proibidas. Até hoje sinto em minha família um leve arregalar de olho quando toco no assunto Ditadura Militar. Foram acostumados a não mexer no vespeiro. Me lembro do dia em que aprendi a letra do hino nacional. Cantava-o no chuveiro, quando minha avó bateu na porta, nervosa:

— Não pode!

Eu não entendia nada. A palavra governo já era em si um tabu. Na minha cabeça de criança, eu achava que todo presidente do mundo prendia quem não obedecesse, que meu vizinho que saía fardado todas as manhãs poderia nos matar, que ser subversivo era algo gravíssimo e que ianques eram aqueles jogadores de futebol americano que, com seus ombros largos, também eram perigosos. Vários terrenos minados se confundiam em minha cabeça.

Minha tia talvez nunca tenha tido a oportunidade de saber das verdadeiras atrocidades cometidas pelo regime militar e o medo calejado ainda a fez desconversar um pouco quando comecei a enumerá-las.

Acabo de interpretar o meu terceiro papel onde a repressão é pano de fundo e mais uma vez tive a mesma sensação. Todas as peças, filmes e livros não darão conta de digerir o indigesto. Precisamos de altos brados para recuperar a história que nos foi roubada. Se não abrirmos a caixa-preta, se não mexermos na sujeira insistentemente varrida pra debaixo do tapete, correremos o risco de que minha tia e muitos "cegos" de plantão arrisquem com sua ignorância um precioso bem chamado liberdade.


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