Folha de S. Paulo


Anjos ocultos

Seu nome é Sebastião e ele nem imagina o bem que nos faz. É garçom de um restaurante que frequentamos, nos traz ótima comida, é muito gentil e duvido que tenha noção do alcance de seu sorriso e de seu olhar de bondade. Sebastião é dessas pessoas que melhoram o seu dia sem que você nem ele percebam.

É um anjo oculto. Simplesmente não se economiza. Derrama o melhor de si sobre os dias banais e, toda vez que vou ao restaurante, sua vida me parece verdadeiramente melhor que a dos outros garçons que trançam com ele pelo salão.

Nas semana passada, pensei muito no Sebastião. Uma amiga querida foi demitida e, entre outras coisas, seu novo chefe a acusava de ser "overfriendly".

"Você acha que eu sorrio demais?, ela me perguntou, às lágrimas. Minha amiga não é "overfriendly", se é que posso entender essa palavra. Trabalhava nessa empresa há muitos anos e era absolutamente querida por seus colegas.

Como Sebastião, é uma pessoa verdadeiramente gentil, sorridente e preocupada com os outros. Consegue dar bom dia sorrindo às oito da manhã, e isso talvez ofenda.

Estamos ficando muito mal acostumados. Ser bom virou qualidade quase pejorativa. Vivemos uma espécie de economia humana, na qual damos em gotas, e o sentimento maior é o medo do abuso.

Sorrir pode ser perigoso e, se alguém insiste em fazê-lo, cuidado. Os sorrisos e elogios foram tão fartamente usados como moeda de troca que o primeiro sentimento em relação a alguém muito gentil passou a ser a desconfiança. Com isso, vamos dando e recebendo o que há de pior em nós, enquanto os anjos ocultos continuam seu trabalho secreto.

Estive ontem no restaurante. Lá estava o Sebastião, de sorriso pronto. Fiquei pensando se ele chegaria a ser diretor de alguma empresa, caso tivesse estudado. Quanto sobreviveria de seu sorriso, sentado numa cadeira de poder? Não sei.

Sebastião é uma existência livre. Não tem medo de dar nem de perder nada -e nem imagina o que seja "overfriendly".


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