Folha de S. Paulo


A falta e o desejo

O CONCEITO platônico do amor vem da origem mitológica de Eros, que representa o amor, o desejo. Ele é filho da mendiga Pénia, a penúria, a falta. O desejo, então, se origina da falta.

O que se ama é justamente aquilo que não se tem. Os pais de Manoel Fernandes, 65, nunca tiveram um carro.

Em 1949, ano em que ele nasceu, seu pai, carroceiro de carvão, perdeu a perna em um acidente de trabalho. Não podia mais dirigir.

A falta dos carros em sua casa gerou um enorme desejo e uma profunda fascinação por eles. Tanto que, mais tarde, Fernandes tornou-se colecionador de automóveis antigos.

Chegou a ter 25 exemplares. Porém, vendeu a maioria nos últimos anos, ficando apenas com três.

Um deles é um Concorde 1980.

O próprio Concorde também é fruto de uma falta: entre 1976 e 1990, era proibida a importação de automóveis.

A inexistência de carros exclusivos gerou o interesse por toda uma indústria de modelos fora de série.

Além daqueles com design moderno, como o Miura, o Puma e o Gurgel, surgiram também outros que homenageavam o passado, como o MP Lafer, o Envemo Super 90 e o Fera XK, além de réplicas em fibra de vidro, parar suprir o desejo dos antigomobilistas.

Uma dessas homenagens, porém, destoava de todo o resto. O enorme Concorde não era uma réplica. Inspirado na era vintage (de 1919 a 1930) dos Cords e Duesenbergs, ele tinha design próprio e mecânica de Ford Galaxie.

Seu criador, o comendador e colecionador João Storani, foi, como Roberto Lee, um dos pioneiros do antigomobilismo no Brasil. Criou o Concorde para ele mesmo, mas acabou sendo convencido por Lee a lançá-lo no Salão do Automóvel de 1976.

Foram produzidos menos de 20 Concordes. Era um dos mais caros nacionais da época e provocava desejo, mas faltava dinheiro para comprá-lo.

Um caso clássico de amor platônico.


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