Folha de S. Paulo


Francisco na Santa Sofia

A expressão "crimes contra a humanidade" foi utilizada, talvez pela primeira vez, em maio de 1915, pela Grã-Bretanha e por seus aliados franceses e russos, para condenar os bárbaros massacres de civis armênios deflagrados a partir do 24 de abril, data das prisões e deportações de intelectuais armênios de Constantinopla. Hoje, cem anos depois, para não incorrer na ira da Turquia, o governo britânico evita definir aqueles eventos como genocídio. O papa, contudo, usou a palavra numa missa oficiada segundo o rito católico armênio, na Basílica de São Pedro, em 12 de abril, diante do presidente da Armênia. Na declaração de Francisco, mais que o reconhecimento histórico do "primeiro genocídio do século 20", há uma ousada estratégia para o século 21.

Francisco visitou Istambul no final de novembro. Em audiência fechada com o presidente turco Recep Erdogan, ouviu um pedido dramático para não mencionar a palavra proibida. O papa cedeu, mas apenas temporariamente. No altar da Santa Sofia, onde está depositada, há 960 anos, a bula de excomunhão que provocou o Cisma do Oriente, esclareceu sua meta estratégica. "Para alcançar o desejado objetivo de completa unidade, a Igreja Católica não pretende impor nenhuma condição, exceto a profissão de fé compartilhada", assegurou ao patriarca ortodoxo Bartolomeu, sublinhando que a reunificação "não significaria a submissão de uma igreja a outra, nem a assimilação". A declaração sobre o genocídio armênio deve ser lida sob essa luz.

O papa Paulo 6º teria dito algo similar ao patriarca Athenagoras, em Jerusalém, meio século atrás. Agora, porém, a paisagem geopolítica é radicalmente distinta. Os elementos fixos, tão presentes hoje como no encontro em Jerusalém, são o desamparo de Bartolomeu na Istambul das mesquitas e a fragmentação nacional da Igreja Ortodoxa. As novidades condensam-se em duas metáforas: Estado Islâmico e Vladimir Putin.

A perseguição jihadista contra minorias cristãs no Oriente Médio e na África esclarece o sentido atual das referências papais ao genocídio armênio. Confrontado com a ameaça de erradicação do cristianismo na Síria e no Iraque, o Vaticano pressiona por um engajamento pleno do governo turco e dos clérigos islâmicos na defesa da liberdade de religião. O silêncio ou a complacência podem converter 2015 em 1915 –eis o significado do alerta de Francisco.

O projeto de reunificação da Igreja nutre-se tanto do perigo jihadista quanto de inéditas oportunidades, representadas pelo "fator Putin". Depois da queda de Constantinopla, em 1453, Moscou converteu-se na "terceira Roma" e o imperador russo tomou o lugar do imperador bizantino na qualidade de protetor da Igreja Ortodoxa. Sob Putin, o Kremlin restaurou a antiga aliança, distinguindo a Igreja Ortodoxa Russa de suas congêneres. O patriarca Kirill celebrou o putinismo como um "milagre de Deus", amaldiçoou o nacionalismo georgiano e abençoou as forças russas que ocuparam a Crimeia. Nos cálculos de Francisco, pesam as fricções entre o patriarcado de Moscou e as demais igrejas ortodoxas autocéfalas, atemorizadas pelo longo cone de sombra da influência geopolítica russa.

A atração exercida pela União Europeia sobre as nações da antiga esfera de influência soviética corresponde, em alguma medida, ao magnetismo que o Vaticano exerce sobre as frágeis igrejas ortodoxas dos Bálcãs, do Oriente Médio e da África do Norte. Para avançar na direção da reunificação da Igreja, o papa deve traçar uma fronteira entre o patriarcado de Moscou e os arcebispos orientais. O tema armênio, tão caro aos cristãos ortodoxos, inscreve-se nessa lógica. No fim, Francisco está dizendo que é Roma, não Moscou, o verdadeiro santuário para a cristandade oriental.

Tempos longos. No calendário papal, o centenário do genocídio é uma escala rumo ao milênio do Cisma, em 2054.


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