Edward Said definiu o "orientalismo" como o empreendimento de construção de um Oriente (árabe-muçulmano) imaginário por intelectuais ocidentais. O Oriente dos orientalistas, originalmente exótico e indecifrável, converte-se ao longo do tempo na fonte do irracionalismo e do perigo. Hoje, ironicamente, o "orientalismo" ganha uma imagem espelhada no "ocidentalismo", que também é obra de intelectuais ocidentais. O Ocidente imaginário que eles descrevem configurou-se com o imperialismo e evoluiu na forma de uma máquina implacável de exploração econômica, opressão social e exclusão etno-religiosa. Esse Ocidente maligno, explicam-nos, é responsável por toda a violência do mundo, inclusive pelo terror jihadista.
Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: "alguns radicais" (Frei Betto) ou meros "lobos solitários" (Arlene Clemesha) que não passam de "maconheiros cabeludos" (Tariq Ali).
Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do "ocidentalismo". Uma "moral dos fins", típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de "meios" incontornáveis.
Os ocidentalistas são cultores do relativismo moral: defendem o princípio "ocidental" da liberdade de expressão para si mesmos, mas juntam suas vozes às dos fundamentalistas religiosos para acusar o Ocidente de libertinagem. No Corão, inexiste a proibição da figuração de Maomé. Amparado apenas no cânone islâmico que proíbe o culto a seres humanos, o veto não passa de uma interpretação abusiva de elites político-religiosas consagradas ao controle social. Contudo, segundo os ocidentalistas, o "Charlie Hebdo" estava "provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta" (Ali), numa "atitude muito ofensiva" (Clemesha). O atentado jihadista deve, portanto, ser entendido como "uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos" (Frei Betto). Na versão deles, os terroristas fizeram justiça, reagindo à inação dos governos ocidentais acumpliciados com os detratores do Islã.
Os ocidentalistas não se preocupam com a consistência argumentativa. Eles dizem que os terroristas alvejaram o "Charlie Hebdo" como reação às charges do profeta, mas calam sobre o ato de terror complementar, no mercado kosher. Depois dos cartunistas, os jihadistas foram atrás dos judeus, comprovando que não lhes interessa o que você faz, mas o que você é. Entretanto, o "ocidentalismo" nunca distingue motivos de pretextos, inspirando-se nos editoriais de jornais governistas controlados por Estados autoritários para persistir nas invectivas contra os cartunistas.
Os ocidentalistas são parasitas intelectuais das correntes minoritárias de intolerância, xenofobia e islamofobia do Ocidente. O primeiro-ministro Manuel Valls declarou que "a França está em guerra contra o terrorismo e o jihadismo, não contra o Islã e os muçulmanos". Angela Merkel disse que "o Islã é parte da Alemanha". A sorte do "ocidentalismo" é que existem Marine Le Pen e o Pegida.