Folha de S. Paulo


Ler 'Jogo de Cena em Bolzano' é um oásis de reflexão e sensibilidade

Vânia Medeiros/Folhapress

Giacomo Casanova (1725-1798), o célebre conquistador veneziano que confessou ter levado à cama mais de uma centena de mulheres, o aventureiro, jogador, escroque, fugitivo da Inquisição e enfim o escritor de volumosas memórias, é uma boa síntese da cultura libertária que mudaria o mundo.

O que a Revolução Americana inscreveu na sua Constituição —todo homem tem direito à "busca da felicidade" (e não, simplesmente, "direito à felicidade", como por aqui se imagina)— se relaciona, pelas vias tortas e vívidas do estilo rococó que marcou a época, com as bochechas rosadas dos anjinhos felizes nos tetos das igrejas e com os seios e coxas à mostra de mulheres igualmente alegres de um ideário que redescobria o sexo à luz da razão iluminista.

Um dos episódios rocambolescos da vida de Casanova —a fuga, em 1756, de uma masmorra em Veneza em companhia de um monge em desgraça— é o ponto de partida real de um desses romances que, pelo prazer da leitura, não queremos que termine: "Jogo de Cena em Bolzano", do húngaro Sándor Márai (Companhia das Letras; tradução de Edith Elek). Márai (1900-1989) é um escritor cuja obra nos dá uma dimensão precisa do que se pode chamar de "civilização literária", o corpus cumulativo da escrita do mundo que é, igualmente, a sua reflexão permanente.

Cada frase de Márai reconstrói o mundo e o torna melhor pelo simples fato de lutar por interpretá-lo, a partir do olhar falível de um narrador que não nasceu hoje. Esse "olhar falível" é a ética fundamental da prosa romanesca.

Casanova desembarca na cidade de Bolzano —está em farrapos, sem dinheiro, e sabe que se o agarrarem novamente será enforcado— e, por pura força da sua lábia legendária, recompõe-se numa hospedaria para retomar a vida alarmante e irresistível de conquistador do mundo.

Acontece que um narrador do século 20 saberá sempre mais do que o próprio Casanova e o seu mundo poderiam saber e, portanto, pode mergulhar nos sonhos e cabeças com camadas sobrepostas de reflexão. O espírito do tempo iluminista, o seu otimismo fundamental, é coberto aqui por uma pátina do nosso pessimismo e de uma nova sensibilidade trágica.

Assim, temas viscerais, como o amor e a paixão, ganham uma dimensão que nos toca diretamente.

O texto fala para nós, e não para eles; a retórica do tempo refeito vem encharcada pelos fios da ironia. Quando Casanova negocia com um agiota um empréstimo de alto risco, numa sequência que simula uma complicada dança de sedução, o narrador anota: "Falaram baixinho sobre dinheiro, como os enamorados sobre seus sentimentos".

O romance se concentra em três momentos maravilhosos em que o sentido da vida de Casanova, a sua força vital, é posto perigosamente em jogo.

O velho e poderoso conde de Parma vem visitá-lo na hospedaria com uma mensagem e um pedido insólito. A mensagem, de sua esposa, Francesca, de 20 anos, é a primeira carta de sua vida: "Ela aprendeu a escrever para escrever a você".

A carta tem três únicas palavras —"Preciso ver você"— e a análise que o conde faz de seu sentido, o modo como explica a Casanova o que quer dizer aquela curta frase, o efeito que teve sobre ele próprio ("A carta me arrebatou, e espero que também o tenha comovido", começa ele) e o elogio da escrita que se segue são páginas que poderiam fazer parte do programa de uma boa oficina de literatura.

Segue-se o pedido: que Casanova passe uma noite com Francesca e a realize com sua arte, mas que ao final a magoe o suficiente para ela nunca mais suspirar por ele —o que também é parte inseparável de seu célebre talento.

Em troca, ele receberia todo o ouro que necessitasse e salvo-conduto. Casanova concorda, com uma condição: faria de graça. Ao que retruca o conde: "É um preço alto". E acrescenta: "Tanto não posso pagar".

Não, não estraguei o prazer do eventual futuro leitor porque, como um origami retórico, a narrativa continua a se desdobrar, até que a própria Francesca se apresenta a Casanova, num deslumbrante duelo literário de máscaras.

Mais não digo. Exceto que, diante da assustadora estupidez teocrático-partidária que hoje pretende pautar a cultura brasileira, a leitura de livros como o de Márai é um oásis de inteligência, silêncio, reflexão e sensibilidade.


Endereço da página: