Depois do aluvião de denúncias de assédio sexual que se seguiu ao episódio do megaprodutor Harvey Weinstein, Nicolau Santos, diretor-adjunto do excelente jornal português "Expresso", tascou como manchete de sua newsletter na quinta-feira (2) a pergunta que não quer calar:
"Ainda falta alguém ser acusado de assédio sexual?" De fato, o número de acusados começa a se assemelhar a uma lista telefônica das antigas, na qual figuram astros do calibre de Dustin Hoffman e Kevin Spacey, e que cobre inúmeros setores e países: o mundo do entretenimento, em primeiro lugar, mas também a moda, o governo britânico (do qual teve que demitir-se o ministro da Defesa, Michael Fallon ), o jornalismo (por exemplo, Michael Oreskes, chefe da divisão de notícias da National Public Radio) e a academia (por exemplo, Tariq Ramadan, badalado especialista em islamismo e famoso polemista).
Parece mesmo que não falta ninguém para ser acusado, como escreveu Nicolau Santos. Só que não: não apareceu, até agora, ninguém no Brasil para acusar alguma personalidade de assédio (exceto o caso, já meio antigo, do ator José Mayer, acusado pela figurinista Su Tonani).
Yann Coatsaliou - 23.mai.2017/AFP | ||
O produtor de Hollywood Harvey Weinstein foi alvo de uma série de denúncias de abuso sexual |
Dá para concluir pelo silêncio ensurdecedor que os homens brasileiros somos todos perfeitos cavalheiros, incapazes de constranger as mulheres? Não é uma hipótese razoável: a cultura machista, base do instinto predador que alimenta o assédio, não é diferente no Brasil.
Se não é razoável, cabe examinar outras hipóteses. Entre elas, a de que as mulheres sentem que denunciar é expor-se inutilmente porque o outro dado cultural muito presente no Brasil (a impunidade) fará com que paguem um preço alto pela denúncia enquanto o denunciado ficará impune.
Talvez não seja mais assim. Na França, por exemplo, explodiu uma campanha com a hashtag #BalanceTonPorc (denuncie seu porco), o que é notável em um país em que uma de cada cinco mulheres é vítima de assédio em seu ambiente de trabalho, conforme pesquisa.
Detalhe: a pesquisa é de 2014, o que significa que as mulheres franceses calaram-se, como as brasileiras, por longo tempo, até que resolveram manifestar-se.
Funciona: a secretaria de Estado para a Igualdade entre Homens e Mulheres, Marlène Schiappa, anunciou no mês passado o lançamento de uma consulta popular para que o governo possa apresentar já em 2018 um projeto de lei "contra a violência sexista e sexual".
Mario Anzuoni/Reuters | ||
O ator Kevin Spacey se licenciou para "buscar tratamento" após denúncias |
A ideia é permitir que a própria sociedade defina o que é aceitável e o que é inaceitável em manifestações na rua de homens para mulheres (ou de mulheres para homens). Ou, posto de outra forma, estabelecer o limite até o qual há um jogo consentido de sedução e a partir do qual se passa a uma agressão sexual ou injúria pública, explica a secretaria.
Estabelecer limites tão claros quanto possível em assunto tão complexo e controvertido é importante, porque, "embora campanhas com hashtags podem dar sensação de empoderamento para mulheres que antes permaneciam caladas, elas não são o ponto de chegada", escreve Zosia Bielsky, colunista do canadense "The Globe and Mail".
Para ela, trata-se apenas do "começo de uma conversa".
Não passou da hora de o Brasil também começar a conversar a respeito?