Folha de S. Paulo


Quando as rosas fazem a diferença

Paul Kagame foi eleito sexta (4) para um terceiro mandato consecutivo como presidente de Ruanda. Confirma com isso a avaliação que sobre ele fez Tom Gardner, correspondente na Etiópia da revista "The Economist", em artigo para a Foreign Affairs: "Kagame conseguiu um nível sem precedentes de hegemonia política em Ruanda. Nenhum líder na África goza dessa autoridade".

A Ruanda de Kagame, há 17 anos no poder, é vista como uma história de sucesso econômico, com seu crescimento hoje na altura de 7%. Não é trivial para um país que ficou conhecido no mundo todo pelo genocídio de 1994, em que cerca de 800 mil pessoas foram mortas, a maioria da etnia tutsi (minoritária), mas uma parte pertencente aos majoritários hutus.

Foi o primeiro dos grandes fracassos da comunidade internacional, precursor da impotência (ou incompetência) para lidar com o morticínio na Síria.

"Kagame é mais popular do que jamais", disse a Gardner Joseph Nkurunziza, diretor-executivo de "Nunca Mais Ruanda", organização de construção da paz nascida após o genocídio.

Tony Gentile/Reuters
Pope Francis poses with Rwanda's President Paul Kagame and his wife Jeannette during a private meeting at the Vatican March 20, 2017. REUTERS/Tony Gentile ORG XMIT: TGN106
Papa Francisco com o o presidente de Ruanda, Paul Kagame, e a mulher deste, Jeannette, em março de 2017

Do meu ponto de vista, a construção da paz em um país tão traumatizado depende mais de Beatrice Gabuka, da qual poucos ouviram falar, do que de Kagame.

Cruzei com Beatrice em um seminário internacional em Montreux (Suíça), faz 10 anos. Sua história pode servir para a reflexão dos brasileiros e brasileiras que ou já desistiram do Brasil ou pensam em fazê-lo ou se refugiaram na indiferença.

Ela é tutsi, perdeu boa parte da família no massacre de 1994 e poderia ter continuado no conforto da vida de funcionária internacional (Unicef, o fundo das Nações Unidas para a Infância). Trabalhava em Angola e, por estar longe, sobreviveu ao massacre dos seus.

Quando a carnificina terminou, largou uma bem-sucedida carreira de 20 anos como funcionária internacional, qualificada pela formação em humanidades e por falar inglês, francês, italiano e até português, apreendido em Angola.

Voltou a Ruanda, comprou uma pequena firma de flores (a Rwanda Flora), virtualmente falida, e transformou-a em uma usina de exportar rosas para a Holanda, que absorve 90% da produção. Dá emprego para 200 mulheres e lançou um programa de treinamento sobre plantios para exportação para 40 jovens sobreviventes do genocídio e/ou órfãos de portadores do vírus da Aids, uma epidemia na África.

Perguntei a ela se houve pelo menos um minuto de arrependimento pela troca feita. "Não, nunca. Sei que lá eu posso fazer a diferença", respondeu. Parece-me óbvio que, se há uma história de sucesso em
Ruanda, ela deve-se à iniciativas como a de Beatrice.

Torço, aliás, para que esse tipo de envolvimento transborde para a política e contribua, em algum momento, para remover a imensa mancha sobre Ruanda que é o fato de que Kagame é um ditador que suprime o dissenso. Persegue e eventualmente mata opositores até no exílio.

Só o envolvimento da sociedade pode fazer a diferença, na política, na sociedade, na economia. Em Ruanda ou no Brasil.


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