Folha de S. Paulo


Falácias do fundamentalismo de mercado

Que contas públicas saneadas são necessárias é uma questão óbvia de senso comum. Que as reformas que estão sendo discutidas e/ou implementadas também são necessárias é igualmente óbvio pela simples e boa razão de que o status quo é muito ruim (se as reformas deveriam seguir alguma outra linha é questão em aberto que não cabe discutir aqui e agora).

Feitas essas duas ressalvas, é vender ilusões o governo afirmar que o país está entrando em um novo ciclo econômico. Primeiro porque está apenas reproduzindo um conceito assim descrito por Anatole Kaletsky, economista-chefe da empresa financeira Gavekal Dragonomics e ex-colunista do "Financial Times", entre outras grifes do jornalismo: "Desde o início dos anos 1980, a política tem sido dominada pelo dogma de que os mercados estão sempre certos e a intervenção econômica do governo é quase sempre errada".

É fácil explicar essa dominação: por ela ou apesar dela (ao gosto do freguês) produziu-se um formidável boom econômico que durou um quarto de século, pouco mais ou menos.

O problema é que "o fundamentalismo de mercado também inspirou perigosas falácias intelectuais", sempre segundo Kaletsky, a saber: "que os mercados financeiros são sempre racionais e eficientes; que os bancos centrais devem simplesmente mirar a inflação e não se preocupar com a estabilidade financeira e o desemprego; que o único papel legítimo da política fiscal é equilibrar orçamentos, não estabilizar o crescimento econômico".

Essas falácias ficaram cristalinamente claras com a grande crise de 2007, mas "políticas fundamentalistas de mercado sobreviveram, evitando uma adequada resposta política à crise", acrescenta o economista.
Dois dados para mostrar que esse caminho ou é incapaz ou é insuficiente para levar de fato a um novo e virtuoso ciclo econômico:

1 - Estudo da consultora francesa Natixis mostra "uma brecha considerável entre o PIB tal como está hoje (dezembro de 2016) e sua tendência antes da crise".

Na Grécia, a brecha é de impressionantes 77%, mas esse pode ser considerado um caso patológico, tanto pelo descontrole das contas públicas como pelas medidas adotadas para saneá-las. Mas na Itália, menos patológica, a brecha é de quase 19%, também imponente.

2 - Mesmo em um país, a Espanha, que há três anos está em recuperação da tremenda crise de 2007, "70% dos lares espanhóis não notam nenhum efeito da recuperação econômica", diz estudo da FOESSA (Fomento de Estudos Sociais e de Sociologia Aplicada).

São lembretes que deixam claro que austeridade e reformas podem ser necessárias mas não são a pomada maravilha que, por si só, cura todos os males econômicos e sociais.

No caso do Brasil, então, é muito pior porque ao fundamentalismo de mercado somou-se o que Delfim Netto chamou na coluna desta quarta-feira (26) na Folha de "monstro teratológico", assim descrito: "O 'poder econômico' submeteu aos seus desejos parte significativa do Poder Legislativo e do Poder Executivo, pelo financiamento criminosos das 'campanhas eleitorais', que foi transformado em 'investimentos' de alta taxa de retorno econômico! E, por via indireta, estendeu o seu poder a parte do Judiciário, que é submetido à aprovação do Legislativo e que depende de promoção pelo Executivo".

Vai demorar muito, pois, para nascer um novo ciclo econômico que seja realmente virtuoso.


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