Folha de S. Paulo


Quando notícia e poder se chocam

AFP
Prédios na região central de Doha, a capital do Qatar
Prédios na região central de Doha, a capital do Qatar

Notícia e poder nunca têm uma convivência fácil, mesmo em democracias. Mas, em regimes ditatoriais, a complicação atinge o paroxismo, de que dá prova mais uma vez a exigência da Arábia Saudita e seus aliados no confronto com o Qatar para que sejam fechadas a rede Al Jazeera e suas filiadas.

Talvez seja até a mais inflexível das 13 medidas que sauditas e aliados cobram do Qatar para pôr fim ao bloqueio total do país decretado há duas semanas.

A Al Jazeera incomoda os ditadores árabes e muçulmanos porque desde sua criação, faz 20 anos, rompeu o molde vigente no Oriente Médio e adjacências: faz jornalismo e não propaganda dos regimes autoritários da região.

É verdade que só não faz jornalismo em relação ao próprio Qatar, que, a exemplo dos parceiros com os quais está agora em conflito, não é exatamente um modelo de democracia.

A cobertura que a emissora fez da chamada "Primavera Árabe" foi perto de primorosa. Como se tratou do primeiro desafio em anos (ou séculos?) do status quo no mundo árabe/muçulmano, irritou profundamente os autocratas.

É eloquente que um dos países que aderiu ao boicote ao Qatar, o Egito, seja governado por um ditador, Abdel Fattah al-Sisi, que destronou o governo da Irmandade Muçulmana, surgido exatamente a partir da Primavera Árabe e comandado por Mohamed Morsi, hoje na cadeia.

A Irmandade Muçulmana é um dos grupos apontados como terrorista que o Qatar apoia, segundo seus ex-parceiros, ora inimigos.

"Terroristas é, agora, um rótulo comumente usado para designar oponentes políticos [dos governantes de turno]", como assinala Joost Hiltermann, diretor do Programa do Crisis Group para Oriente Médio e Norte da África, em artigo para o "New York Times".

A Al Jazeera deu tratamento correto à Irmandade Muçulmana, tanto durante a Primavera Árabe como em seu curto período de governo.

Eis o que diz do grupo Robert Leiken, diretor dos Programas de Imigração e Segurança Nacional do Nixon Center dos Estados Unidos, depois de entrevistar dezenas de líderes e ativistas da Irmandade em sete países:
"A Irmandade é uma coleção de grupos nacionais com diferentes panoramas, e as diferentes facções discordam sobre a melhor maneira de levar avante a sua missão. Mas todos rejeitam a guerra santa global, enquanto abraçam eleições e outras características da democracia".

Não combina, pois, com o rótulo de terroristas e, sim, com o tratamento dado pela rede que os sauditas agora querem fechar.

É claro que a Al Jazeera não é o único alvo visado pelos sauditas e seus aliados. Como escreve Joostermann, do Crisis Group, querem "enfrentar seus dois mais potentes adversários, o Irã e a Irmandade Muçulmana".

Cortar os laços com o Irã, como exigido pelos sauditas, é perto de impossível: o Qatar compartilha com o Irã um imenso campo de gás natural off shore, que fornece ao pequeno país do golfo boa parte de sua nada pequena riqueza.

Parece claro, pois, que as exigências ao Qatar não passam nem perto de serem "razoáveis e factíveis", ao contrário do solicitado pelo secretário de Estado, Rex Tillerson.

A ver, agora, se os Estados Unidos de Trump avalizam uma violação clara da liberdade de imprensa e um desconhecimento total da soberania de um país aliado (como são também aliados os outros envolvidos no conflito).

Países que romperam relações com o Qatar

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