Folha de S. Paulo


Ditaduras são sempre tóxicas

Sana - 9.jan.207/Associated Press
In this photo released Monday, Jan. 9, 2017 by the Syrian official news agency SANA, Syrian President Bashar Assad, left, speaks with French journalists in Damascus, Syria. Assad said in remarks published on Monday that he was prepared
O ditador sírio Bashar al-Assad durante entrevista a jornalistas na capital, Damasco

É tarde demais para o mundo se horrorizar com o ataque com armas químicas ocorrido na terça-feira (4) na Síria.

O horror é inerente às ditaduras, de qualquer coloração política, e elas se instalam ou se mantêm ante a indiferença e/ou impotência do mundo civilizado. No caso da Síria, a ditadura do clã Assad já dura 46 anos, primeiro com o pai, Hafez, e a partir de 2000 com o filho Bashar. Que esse horror suba alguns pontos na escala, com ataques com armas químicas, é tudo menos surpreendente.

Até porque já ocorreu antes: o "Buzzfeed" relata que, em outubro passado, uma investigação conjunta das Nações Unidas e da Organização para a Proibição de Armas Químicas denunciou que forças aliadas ao governo sírio haviam usado armas químicas pelo menos três vezes entre 2014 e 2015.

O caso mais notório ocorreu em 2013, com o uso de gás sarin em Ghouta, nas imediações de Damasco, o que causou a morte de cerca de 500 pessoas. O episódio levou a um acordo, organizado por EUA e Rússia, pelo qual o governo sírio entregou, em tese, todo o seu arsenal de armas químicas para destruição.

Se, como tudo parece indicar, o ataque desta semana é de responsabilidade do governo ou de aliados, fica claro que nem todo o arsenal foi destruído. Escrevo antes de saber o resultado da sessão de emergência das Nações Unidas, até porque é desnecessário esperar: se tivesse que agir, a comunidade internacional deveria tê-lo feito no início da crise síria, em março de 2011.

Tratava-se, então, da revolta de parcela importante da sociedade civil contra a ditadura. Revolta pacífica, reprimida, porém, com a violência característica de toda ditadura.

Deu no que deu: os rebeldes pegaram em armas, o regime endureceu ainda mais, outros países se envolveram –e, seis anos depois, "era uma vez um país, a Síria", como escreve o radialista Fouad Roueiha no capítulo sírio do livro "Rivoluzioni Violate", editado na Itália a propósito da fracassada Primavera Árabe.

É natural que um ataque com armas químicas acenda sinais de alarme e desperte gritos de indignação, mas o alarme e a indignação deveriam ter ocorrido também (ou principalmente) ante os 470 mil mortos, os 5 milhões de refugiados no exterior e os 6,3 milhões de refugiados internos.

Para ficar só no tema armas químicas, "desde o início do conflito em 2011, mais de 14 mil pessoas foram vítimas de ataques com armas químicas e mais de 1.500 morreram em decorrência", escreve para o "New York Times" Ahmad Tarakji, da Sociedade Médica Sírio-Americana.

Para um país de cerca de 18 milhões de habitantes, tais números desenham o pior desastre humanitário desde a 2ª Guerra Mundial, como admitem os organismos das Nações Unidas. A ditadura e a guerra que ela atiçou deixaram a Síria com 85% da população na pobreza, com mais de 2/3 em extrema pobreza, e 1,75 milhão de crianças sem escola.

Uma tragédia inenarrável a que o mundo assistiu, às vezes horrorizado, mas sempre passivo.


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