Folha de S. Paulo


O alzheimer e a arte de perder

E se de repente as suas memórias começassem a se apagar, tal como anotações feita a lápis? Você não se lembraria mais do caminho de casa, dos compromissos e das pessoas que ama. E se tudo aquilo que antes o definia, como as suas ideias, os seus sentimentos, o seu trabalho, começasse a se perder?

O filme "Para sempre Alice", que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros, traz à tona todos esses medos e questionamentos. Nele acompanhamos o drama de Alice (Julianne Moore), uma renomada professora de linguística que descobre, aos 50 anos, um tipo raro de alzheimer, de origem genética.

Ao longo de quase duas horas do drama, acompanhamos o "desaparecimento" da Alice à medida que os sintomas vão se acelerando e interferindo no dia a dia da protagonista e da família. Moore está simplesmente genial, não é à toa que levou o Oscar de melhor atriz.

Uma das partes mais emocionantes do filme é quando Alice, em discurso em uma associação de apoio a portadores de alzheimer, fala sobre a arte da perda. Reproduzo o texto abaixo:

"A poetisa Elisabeth Bishop escreveu: 'A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério'. Eu não sou uma poetisa. Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo meus modos, perdendo objetos, perdendo sono e, acima de tudo, perdendo memórias.

Toda a minha vida eu acumulei lembranças. Elas se tornaram meus bens mais preciosos. A noite que conheci meu marido, a primeira vez que segurei meu livro em minhas mãos, ter filhos, fazer amigos, viajar pelo mundo. Tudo que acumulei na vida, tudo que trabalhei tanto para conquistar, agora tudo isso está sendo levado embora. Como podem imaginar, ou como vocês sabem, isso é o inferno. Mas fica pior.

Quem nos leva a sério quando estamos tão diferentes do que éramos? Nosso comportamento estranho e fala confusa mudam a percepção que os outros têm de nós e a nossa percepção de nós mesmos. Tornamo-nos ridículos. Incapazes. Cômicos. Mas isso não é quem nós somos. Isso é a nossa doença. E como qualquer doença, tem uma causa, uma progressão, e pode ter uma cura. Meu maior desejo é que meus filhos, nossos filhos, a próxima geração não tenha que enfrentar o que estou enfrentando. Mas, por enquanto, ainda estou viva. Eu sei que estou viva. Tenho pessoas que amo profundamente, tenho coisas que quero fazer com a minha vida. Eu fui dura comigo mesma por não ser capaz de lembrar das coisas. Mas ainda tenho momentos de pura felicidade. E, por favor, não pensem que estou sofrendo. Não estou sofrendo. Estou lutando. Lutando para fazer parte das coisas, para continuar conectada com quem eu fui um dia.

'Então, viva o momento', é o que digo para mim mesma. É tudo que posso fazer. Viver o momento. E me culpar tanto por dominar a arte de perder. Uma coisa que vou tentar guardar é a memória de falar aqui hoje. Irá embora, sei que irá. Talvez possa desaparecer amanhã. Mas significa muito estar falando aqui hoje. Como meu antigo eu, ambicioso, que era tão fascinado em comunicação. Obrigada por essa oportunidade. Significa muito para mim."

Sim, o alzheimer é uma doença triste, devastadora. Mas, ao mesmo tempo, é uma doença muito real, responde por 70% dos casos de demência. E, quanto mais tempo vivermos, maior é a chance de que ela cruze os nossos caminhos.

A doença se caracteriza pela perda das funções cognitivas (memória, orientação, atenção e linguagem), causada pela morte de células cerebrais.
Quando diagnosticada no início, é possível retardar o seu avanço e ter mais controle sobre os sintomas, o que garante melhor qualidade de vida ao paciente e à família.

Não se sabe por que a doença de Alzheimer ocorre, mas hoje são conhecidas situações que aumentam o risco de desenvolvê-la, como hipertensão, diabetes, obesidade, tabagismo e sedentarismo. Alguns estudos apontam que se eles forem controlados podem retardar o aparecimento da doença.
Para saber mais sobre a doença, diagnóstico e tratamento, acesse o site da Abraz (Associação Brasileira de Alzheimer).

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Um outro momento emocionante do filme é quando Alice tenta manter as palavras na memória por meio do uso de jogos em seu smartphone e de entender a brevidade da vida ao lembrar-se das histórias que ouvia de sua mãe:

"Quando eu era bem nova, na segunda série, minha professora falou que borboletas não vivem muito, algo em torno de um mês, e fiquei tão chateada. Fui para casa e contei para a mamãe. E ela disse: 'É verdade. Mas elas têm uma linda vida'."

"Para sempre Alice" me tocou fundo. Talvez por me trazer lembranças de familiares que sofreram de alzheimer e já não estão mais entre nós. Ou simplesmente por me colocar frente de uma inevitável constatação: somos breves, frágeis e vivemos cercados por medos.


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