Folha de S. Paulo


O que foi feito de tudo o que a gente sonhou?

Michel Filho-23.out.2014/Agência O Globo
*** ALTA ONLINE*** São Paulo (SP) 23/11/2014 - Eleições - Militantes Pró-Aécio e Pró-Dilma entraram em confronto ao lado Theatro Municipal quando os movimentos se encontraram após percorrerem algumas ruas do centro da cidade. Na foto, petista tenta arrancar bandeira de manifestante no ônibus. Foto Michel Filho/Agência O Globo ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM*** - Aécio neves, Dilma Rousseff. Petistas e tucanos. Briga. Confronto
Durante campanha presidencial, militantes pró-Aécio e pró-Dilma entraram em confronto em São Paulo

Leio estarrecida a notícia de que a educadora Pilar Lacerda, a ativista por uma educação inclusiva Maria Antonia Goulart e o senador Lindbergh Farias foram agredidos fisicamente quando jantavam num restaurante no Rio, por suas convicções políticas. Lembrou-me a cena do belíssimo livro autobiográfico de Stephan Zweig, "O mundo de ontem", em que, numa Áustria pré-nazista, grupos de jovens violentos davam mostras públicas de sua virilidade.

Já há algum tempo, sinto uma polarização incompatível com o que acreditava ser o século 21. Ninguém tem razão e todos tentam vencer no grito. O outro, o não portador da verdade, tem falhas morais que eu não tenho, de acordo com uma lógica onipotente. O outro é o problema, num bipolarismo que Jonathan Sacks descreve como a raiz da violência.

E a construção do futuro do país? Difícil, neste clima, discutir propostas para melhorar a saúde, a educação, a mobilidade urbana, a cena cultural ou outros temas que deveriam marcar a agenda de debates, nesta semana em que se elegem muitos dos prefeitos do país.

O debate sobre a reformulação do ensino médio, por exemplo, proposta inicialmente pelo governo anterior e retomada agora, se dá num clima de acusações mútuas, meias verdades e defesa de agendas corporativistas. Continuamos neste flá-flu político que, aparentemente, dada a ruptura de um pacto anterior, ninguém consegue evitar.

E, no entanto, fomos juntos às ruas pedir, nos anos 70, o fim da ditadura. Tivemos sonhos de um Brasil mais justo, com mais equidade, e em que a discussão saudável deveria se dar tanto no Parlamento como em espaços comunitários. Juntos construiríamos uma política educacional diferente.

E, de fato, começamos a fazê-lo: colocamos todas as crianças na escola, passamos a avaliar a aprendizagem, priorizamos a inclusão e a educação infantil. Lutamos pela reforma sanitária, em que centros de saúde concentrariam a atenção primária e os hospitais não se entupiriam de pacientes mal atendidos. Abrimos espaços para a avaliação da qualidade das instituições superiores e para maior acesso às universidades.

Avançamos em algumas agendas, novos problemas se apresentaram e outros não conseguimos resolver. Mas outras gerações poderiam fazê-lo.

"O que foi feito amigo, de tudo o que a gente sonhou?" — tocavam as rádios no mundo pré-internet, adiantando um lamento que sinto na alma a cada vez que leio sobre um episódio como o ocorrido no Rio, seja de um lado ou de outro deste feio ambiente bipolar em que o Brasil se encontra.

Possam as eleições de domingo iniciar um novo ciclo, em que as atenções foquem mais a busca de um novo pacto pela construção do futuro.


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