Folha de S. Paulo


Juntar os cacos para fazer um mosaico

Uma das vantagens do jornalismo sobre a apuração em buscas na internet é a possibilidade de com ele o leitor obter informação organizada, estruturada, consolidada. Essa é uma missão básica do jornalista.

Quando o jornal se limita a divulgar dados que contradizem outros publicados antes e não esclarece as incoerências, ele se abstém de um dever essencial e deixa de aproveitar um dos mais importantes diferenciais que justificam sua existência e relevância.

Em dez meses poucos temas mobilizaram tanto a opinião pública quanto a Lei Seca no trânsito, regulamentada em junho de 2008.

Como tem sido infelizmente comum e tenho apontado neste espaço com frequência, a Folha pouco fez para municiar a sociedade com material para ela se posicionar e influir nas decisões durante a tramitação do projeto de lei.

Este jornal parece achar menos importante informar ao público sobre a agenda do Congresso do que noticiar cruzadas moralistas, fofocas e factoides.

Quando a lei entrou em vigor, ele fez um bom trabalho inicial. Encomendou pesquisa ao Datafolha, que comprovou imenso apoio popular à medida, publicou instigantes artigos a favor e contra, editou reportagens bem feitas sobre sua aplicação.

Quando começaram a aparecer conclusões sobre a eficiência da lei, seu comportamento passou a ser de despejá-las sobre o leitor mesmo que umas negassem as outras.

Cobrei insistentemente na crítica diária das edições que o jornal juntasse os cacos para compor um mosaico com sentido. A bem da justiça, ele fez isso na edição de 19 de janeiro deste ano.

Concluiu-se que existe um viés de resultados positivos atribuíveis à lei, mas a extensão dos benefícios é indefinida, que ela só tem impacto quando há fiscalização intensa e que ela não pode ser vista como solução milagrosa.

O problema é que mais quatro meses se passaram, novas pesquisas de fontes diversas voltaram a ser anunciadas e a Folha tornou a oferecer ao leitor seus resultados às vezes opostos entre si sem nada para evitar confusão.

A publicação periódica e isolada desses dados sem comprovação da acuidade científica e metodológica dos trabalhos que os geraram e sem fio norteador para dar coerência com o publicado antes só faz atrapalhar o leitor.

Não há dúvida sobre a relevância do tema. Ninguém pode aceitar que pessoas como o personagem de Nicolas Cage no filme indicado abaixo andem por aí colocando em risco a vida de outros. Os dois livros apontados abaixo mostram bem a gravidade do problema.

Mas não se pode tampouco aceitar como boas soluções que não sejam eficazes de fato. E ainda não se sabe se a Lei Seca no trânsito funciona mesmo.

PARA LER

"Impacto da Violência na Saúde dos Brasileiros", Ministério da Saúde, 2005 (disponível no site http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/impacto_violencia.pdf)
"A Mudança Cultural que Salva Vidas", de Fernando Moreira, Arquimedes Edições, 2008 (R$ 23, à venda pelo telefone 0/ xx/21/ 2524-7242)

PARA VER

"Despedida em Las Vegas", de Mike Figgis, com Nicolas Cage, 1995 (a partir de R$ 12,90)


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