Folha de S. Paulo


Leituras de fotos e fatos

Talvez ninguém tenha entendido mais de leitura do que os grandes escritores. Marcel Proust dizia que "cada leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo".

Jorge Luis Borges ressaltava a autonomia absoluta do leitor, a certeza de que o texto não depende só de quem o constrói, mas também de quem o lê.

Há inúmeros estudos científicos sobre recepção dos meios de comunicação de massa que comprovam a hipótese dos romancistas. A mesma mensagem é compreendida por diferentes indivíduos de maneiras muito diversas, às vezes antagônicas, entre si.

Esta semana, leitores da Folha deram nova demonstração de que esta interpretação do fenômeno da leitura é provavelmente correta. Um mesmo editorial, "Revés da oposição", sobre o depoimento da ministra Dilma Rousseff ao Senado, na quinta-feira, despertou reações opostas.

Houve quem o considerasse exemplo de que a imprensa está inteira a favor do governo federal, inclusive a Folha. Outros, em maior número, acharam que ele reforça o caráter de oposição à administração Lula que vêem no jornal.

A cobertura da fala da ministra e a manchete de sexta-feira, com novas revelações sobre o caso do dossiê dos gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, reavivaram o assunto, que estava algo adormecido.

Quando o episódio do dossiê teve início, este ombudsman era apenas leitor. E a minha leitura era a de que se estava fazendo muito barulho por nada ou pelo menos por muito pouco.

Mantenho este ponto de vista. Em minha crítica interna de sexta-feira, afirmei que as questões indígenas e de conflitos de terra na região Norte "são mais relevantes para a nação e deveriam ocupar o espaço de honra que é concedido às futricas político-partidárias que, a meu ver, não levam a coisa nenhuma a não ser ao acirramento do ódio irracional e imaterial que grassa entre petistas e tucanos especialmente em São Paulo."

Claro que o assunto tem a sua importância relativa. Só que não creio ser tão grande a ponto de merecer o rio de tinta que já se gastou na exploração de meandros detalhados sobre seus atores e motivações.

Acho que a Folha, ao tratar do tema esta semana, cometeu erros jornalísticos, independentemente da avaliação do valor intrínseco do assunto. A chamada da primeira página de quinta-feira, como ressaltei na crítica interna, estava excessivamente editorializada.

Havia advérbios e adjetivos demais para texto noticioso. Se queria apontar contradições da ministra ao longo do tempo, o jornal podia tê-las relatado com a reprodução de suas falas e as datas em que foram feitas.

A foto da capa de quinta também provocou leituras distintas, muitas iradas. Mas neste aspecto não acho que tenha havido erro. A foto mostra uma ministra enfática, irritada, na ofensiva.

A imagem retratava provavelmente o momento mais destacado do seu depoimento, quando respondia à provocação descabida e ofensiva que lhe fizera o senador José Agripino Maia.

Era uma ilustração do fato do dia. Na sexta, a ministra esteve com o presidente Lula em solenidade amena. E a Folha publicou, na edição nacional, foto dela, sorridente e simpática. Era a ilustração do fato do outro dia.

Depõe contra o espírito de isenção do jornal, entretanto, que essa foto de sexta tenha sido substituída, na edição São Paulo, por outra, com Dilma e Lula em momento de aparente enfado.

Toda leitura é possível, como ensinam Proust e Borges. Mas vai ser difícil achar quem leia, nessa alteração editorial, um gesto de simpatia à ministra.


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