Folha de S. Paulo


Antipolítica x antijornalismo

Filósofos franceses, especialistas em assuntos da alma e da política, costumam dizer que as paixões, os interesses e as representações dos cidadãos se colocam ao serviço da lógica da política e favorecem a antipolítica, mas parecem estar acontecendo ainda mais coisas neste combalido pedaço de mundo quando a primeira-dama se debulha em lágrimas ao som da "Ave Maria" de Gounod e a imprensa dá ao fato um destaque aparentemente desmedido. Antijornalismo, também?

Essa história começa quando a mídia obedeceu ao recado do presidente da República. Num enfático coçar do dedo, ele anunciou a falta da aliança, deu o sinal. Fez questão de trazer para a esfera pública sua vida privada. Reuniu a imprensa para dizer bem alto que de sua vida íntima nada falaria. A simples menção da negativa é a senha para que o privado se torne público. E o caso foi para os jornais e deu até capa para as revistas "Veja" e "IstoÉ Senhor". Nesta semana, deve alimentá-las novamente. Nenhuma discussão ética de invasão de privacidade sobrevive quando figuras públicas alimentam direta ou indiretamente a devassa daquilo que se convencionou a chamar de vida íntima.

Vingou a antipolítica e não o antijornalismo. Na última segunda-feira, por exemplo, no rastro desse sinal, reportagem do "Jonral do Brasil" investigou a vida púiblica da primeira-dama enquanto presidenta da LBA e revelou algo inédito. Até então as denúncias relativas às irregularidades na LBA se localizavam na periferia de sua presidência. A reportagem de primeira página do "JB" sustentava mais: Rosane Collor gastou dinheiro da LBA no final de 1990 (eleições) naquilo definido pelo jornal como "assistencialismo explícito": 27 mil enxovais sem concorrência, Cr$ 35 milhões de transporte de água em carros-pipa da Construtora Malta (da própria família de Rosane), dois itens de uma longa lista recolhida pelo jornalista Mário Rosa nos computadores do governo. Ele conseguiu uma senha secreta de entrada no sistema e usou terminais do gabinete do senador Eduardo Suplicy, do PT.

Até ali, a fritura da primeira-dama era alfo bastante estimulado nos corredores palacianos. A representação esperada era a da política. Tanto que um jornal dócil para com o governo, como o "Globo", se permitiu a ousadia de levar para a primeira página charge de Chico Caruso retratando Rosane em uniforme de prisioneira. (Diga-se a propósito da charge que condenava simbolicamente a primeira-dama, julgava-a antes de a Justiça se pronunciar sobre qualquer irregularidade denunciada, configurando carga excessiva contra qualquer ser humano).

A charge veio a público no exato dia em que os grandes jornais do país e o próprio "Globo" colocavam em título as "lágrimas da humilhação" choradas por Rosane na catedral de Brasília, por ocasião da missa do 49º aniversário da LBA. Rosane se viu completamente isolada do marido e das figuras da corte brasiliense. No dia seguinte, sexta-feira, o "Globo" explicou em primeira página, sob a rubrica "Protesto", que "muitos leitores" telefonaram para manifestar descontentamento com a charge. Não era um pedido de desculpa, evidentemente. O fato de o "Globo" ter levado a charge para a capa implica muito mais do que uma decisão estética ou jornalística. Ela é, antes de tudo, política. O jornal, na esfera da representação da própria regra do jogo, sentiu-se liberado para tanto.

Instaurada a antipolítca, o Planalto reagiu. Algo extravasou ao rudimentar planejamento das frituras públicas. A própria imprensa deu conta da "crueldade" dela mesma para com a primeira-dama. O governo denunciou também o PT como culpado do calvário da primeira-dama. Collor agradeceu o gesto de "conforto e solidariedade" de Sarah Kubitshchek ao amparar Rosane emprestar-lhe um lenço na catedral. A fritura, viu-se, escapou do controle do Planalto.

O grande desafio para a imprensa independente, no entanto, é o de desvendar essa história, ir a fundo. O movimento ensaiado na sexta-feira foi o de transformar a primeira-dama em vítima - de seus inimigos, do PT e da imprensa. O choro é a expressão máxima da mulher indefesa ante as perseguições. Mas, ao exercer função pública, ninguém está livre do controle possível da sociedade. A imprensa jamais estará errada em investigar essas gestões. E os gestores devem prestar contas. Até aqui, a presidenta da LBA não prestou contas e nem respondeu às denúncias. Só chorou.

Não se pode culpar a imprensa por ter aceito o jogo da falta da aliança. A isca foi pega e nem foi no primeiro instante. Collor teve de coçar bastante o dedo. Cabe a mídia descobrir por que e revelar aos leitores. Ainda há muita coisa no ar nessa história. Como diz o adágio, "comer e coçar, vai de começar".

RETRANCA

*Recebi, terça-feira, fax do secretário de imprensa do presidente Collor, Claudio Humberto Rosa e Silva. Alinhava manchetes de jornais sobre a reunião dos governadores em Brasília para discutir o emendão, as mudanças na Constituição propostas por Collor. O governo precisa do apoio e propôs, em troca, a rolagem da dívida dos Estados.
*Na primeira página ds Folha, título afirmava peremptoriamente: "Governadores negam acordo para emendão". O texto de capa era menos incisivo: "Os 27 governadores do país rejeitaram ontem, após oito horas de reunião em Brasília, a vinculação da rolagem da dívida dos Estados à aprovação do emendão..."
*Na lista fornecida pelo porta-voz, a maioria dos jornais traduzia de outra forma a notícia. Alguns: "Disposição para debater reformas" ("Gazeta Mercantil"); "Governadores apoiam e vão aperfeiçoar mendão" ("Zero Hora"); "Governadores apoiam reforma da carta" ("Estado de Minas"). A lista revela algumas discrepâncias, como a da manchete do jornal "Hoje em Dia", de Minas: "Governadores divergem sobre emendão". Ou do "Diário do Nordeste", do Ceará: "Governadores limitam apoio ao emendão". Nada, entretanto, tão radical na interpretação quanto a Folha noticiou a tal reunião e a traduziu para os leitores. Antes mesmo de ter recebido o fax do porta-voz, este ombudsman já havia percebido que o título não correspondia ao teor das reportagens do próprio jornal. Vale a pena ler trechos da crítica interna que circulou na manhã da terça-feira:
* "Emendão 1 - com base no material que se lê, tanto na primeira página como nas páginas 1-4 e 1-5. É possível chegar-se também a enunciado contrário ao da primeira página sobre a posição dos governadores quanto ao emendão."
* "Emendão 2 - Eles falaram da necessidade de promover mudanças na Constituição (o que Collor quer), apoiaram a proposta de fim da estabilidade para servidores públicos (proposta explosiva de Collor) e o governador Luiz Antônio Fleury Filho, de São Paulo, chegou a dizer que o PMDB até pode deixar de ser oposição na discussão do emendão."
* "Emendão 3 - O que me pareceu mais óbvio no material da Folha não foi o que os governadores negaram acordo o quanto antes. Rola-se a dívida dos Estados antes e tudo está resolvido. Portanto, nesse sentido, um título que detectasse que os governadores trocam sim a rolagem das dívidas pelo emendão seria igualmente certo."
* "Emendão 4 - O que eu estou querendo dizer é que a Folha não dá aos seus leitores evidências de que os governadores negaram o acordo para o emendão."
* Aí está. Apressado e contraditório em relação ao próprio noticiário, o título não o refletia. O leitor que leu apenas o enunciado de capa ficou desinformado. Quem leu tudo pode ver que alguma coisa não estava andando bem.
* Na quinta-feira foi outro o problema. Burocraticamente o jornal pegou o resultado da votação na Câmara e manchetou: "Câmara aprova indexação salarial".
* Desta vez, comparado com a notícia dos governadores, o enunciado estava corretíssimo. Traduzia o acontecido: os deputados federais indexaram o salário. A imperícia jornalística, porém, está exatamente em reproduzir o acontecido sem atentar para o seu conteúdo mais importante, a essência da notícia. Ao noticias factualmente o resultado da votação na Câmara, o jornal ficou na aparência da notícia. Assim como ficaram na aparência os jornais "O Estado de S. Paulo" ("Câmara aprova prefixação salarial por índice a ser criado") e o "Jornal do Brasil" ("Deputados aprovam mínimo de 42 mil").
* Pois bem, enquanto na terça-feira a Folha potencializava equivocadamente um enunciado contra Collor (ao interpretar que os governadores haviam rejeitado acordo sem dar a evidência disso), dois dias depois perdia oportunidade legítima de manchetar uma clara derrota do governo na Câmara.
* Os deputados aprovaram exatamente aquilo que o governo não queria. O projeto da oposição teve 245 votos a favor, 195 contra e quatro abstenções. Mas o fato de a Câmara ter aprovado o projeto era menos importante do que a discordância em relação ao projeto. Portanto, dizer que a Câmara tinha aprovado a prefixação dava importância desmedida a um fato menor em detrimento do maior: o governo doi derrotado na Câmara.
* Haja esquizofrenia. Quando o governo não é derrotado, a Folha diz que o foi com destaque - caso dos governadores. Quando é realmente derrotado ela não diz - caso dos salários.


Endereço da página: