Folha de S. Paulo


Carência de dúvidas

O governo Collor voltou a surpreender a mídia na semana passada com o anúncio da liberação antecipada de cruzados novos. A notícia mereceu destaque nos telejornais e manchete nos diários importantes. "Antecipada a volta de cruzados", manchetou genericamente esta Folha. Em "O Estado de S. Paulo", quase o mesmo: "Governo antecipa liberação de cruzados". No "Jornal do Brasil", interpretação favorável: "Collor libera cruzados e estimula poupança". Ou, então, no título preciso do "Jornal da Tarde": "Cruzados até 200 mil saem dia 15/8".

Mais uma vez se comprova que a capacidade da mídia brasileira refletir com criticidade o noticiário governamental continua inversamente proporcional ao seu poder de julgar e condenar antes que a Justiça se pronuncie: quase total.

Pequena exceção, entre os jornais, viu-se no carioca "O Globo", sempre o mais suspeito em relação ao noticiário oficial. No entanto, o "Globo" praticou o jornalismo mais distanciado no dia da grande notícia da liberação dos 200 mil cruzados. Entre os grandes jornais, foi o único a trazer em primeira página (e internamente) um "algo mais" importante. Conforme declarações do ex-Procurador Geral da Fazenda, Cid Heráclito, a medida seria inconstitucional por estabelecer tratamento desigual para quem tem mais de Cz$ 200 mil bloqueados.

A Folha reagiu positivamente no dia seguinte e trouxe, também em primeira página, notícia de que a maioria dos juristas ouvidos considerava a forma de liberação um desrespeito à Carta. Em todo caso, discute-se agora se a "forma de liberação" é uma afronta. Nem a própria mídia se lembra mais (com o escândalo merecido) que o próprio confisco em si, o maior atentado à Constituição. E isso a Justiça Federal o tem provado diariamente na concessão de liminares para levantamento do dinheiro bloqueado.

Tudo bem. O fato é que, também no rastro dessa liberação, passou quase despercebido na mídia um assunto da maior importância para o bolso do leitor (e consumidor): a correção das cadernetas de poupança vencidas dia 1º de agosto ficou abaixo da inflação de julho. A perda real dos aplicadores foi da ordem de 203%. Ressalta-se aqui um mérito da Folha: foi o único dos jornais a destacar esse dado, em manchete. Teve agilidade em eleger assunto principal algo que a notícia da liberação dos cruzados, na véspera, ofuscou.

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Por falar em poupança, a mídia não tem acompanhado como deveria o andamento dos processos judiciais que solicitam a correção de mais de 80% nas cadernetas de poupança quando do primeiro plano Collor. O governo deu sumiço na correção e é possível recuperá-la via poder judiciário. Mas os jornais, quando dão essas notícias, escondem.

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Para se ter ideia de quão acriticamente se acompanha a economia no Brasil, leia agora reprodução de parte do noticiário do Jornal Nacional, da Rede Globo, na semana retrasada, quando foi anunciada a sanção presidencial à nova lei da Previdência. O locutor Cid Moreira introduziu o assunto com a voz mais impostada do que o normal:
"A partir de amanhã nenhum aposentado poderá receber menos de um salário mínimo por mês, como acontece hoje com mais de quatro milhões de brasileiros. Este é um dos benefícios da nova lei da Previdência, sancionada hoje pelo presidente Collor".
Entrava um repórter dizendo que a lei era um "velho sonho" dos aposentados e se tornava "uma nova esperança" para quem vai se aposentar e discorria sobre os outros "benefícios". E Cid Moreira retornava à telinha para garantir a entrada de um novo bloco de entrevistas: "Sobreviver com menos de um salário mínimo por mês é um drama na vida de mais de metade dos aposentados".
Ora, como se sobreviver com um salário mínimo inteiro fosse menos dramático na vida de qualquer um, aposentado ou não: Cr$ 17 mil nos valores de hoje, não mais de Cr$ 26 mil com abono e cesta básica.
Salvou-se o Jornal Nacional, contudo, por intermédio de comentário de Joelmir Beting. Se não funcionou como antídoto para o besteirol apresentado em mais de dois minutos anteriormente, pelo menos levou 30 segundos de lucidez aos telespectadores: "É, o drama brasileiro está aí. Não basta pagar salário mínimo aos aposentados, não basta garantir salário mínimo aos aposentados, não basta garantir salário mínimo a quem trabalha no setor público, no setor privado. É preciso encher a bola do próprio salário mínimo no Brasil, que é hoje o piso salarial mais baixo da América do Sul, abaixo de 75 dólares. E, mesmo assim, 30 milhões de brasileiros ganham menos de um salário mínimo trabalhando. É como se toda a população da Argentina estivesse sobrevivendo dentro do Brasil, com menos de 20 mil cruzeiros. Quer dizer, um salário mínimo é o cartão de visita da incompetência da economia brasileira."

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Este jornal republicou terça-feira passada entrevista do ex-diretor do diário norte-americano "The Washington Post", Benjamin Bradlee. Para quem não leu, reproduzo dois trechos, definidos pelo jornalista Matinas Suzuki Jr., editor-executivo desta Folha, como "uma imensa aula de jornalismo". Aí vão:
Pergunta: Como ler um jornal?
Bradlee: Interesso-me pelos leitores. Você olha o jornal como profissional, conhece os redatores, sabe porque um artigo está na primeira página. As pessoas têm, ao contrário, que descobrir nossos segredos.
Pergunta: E o segredo do bom jornalista, qual é?
Bradlee: Trabalhar mais que todos os outros colegas. Ir dormir sabendo que nenhum jornalista que esteja cobrindo o mesmo caso trabalhou mais do que você. Não ter medo de dizer: Desculpe, mas não entendi bem. Aprender a escrever. Ser ambicioso, ter ideais. Não se deixar amedrontar, desconfiar do poder e duvidar da versão de quem governa.

RETRANCA

*Quem acompanha esta coluna tem visto as críticas à mídia, principalmente pela docilidade com que acompanha as atividades da indústria automobilística instalada no Brasil. Na última falei do alto preço e da má qualidade dos carros brasileiros. E expliquei que a mídia começa a acordar para o problema, cheguei a cobrar do presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, Jacy Mendonça, explicações sobre esse assunto.

*Elas vieram na forma de artigo publicado na seção Tendências/Debates na sexta-feira passada: "Sobre o ombudsman, as carroças e a verdade". Agradeço ao sr. Mendonça pelo trabalho - não o de responder ao ombudsman, mas de dar alguma satisfação aos leitores.

*Quem leu o texto pode perceber, em resumo, que o preço escorchante dos carros fabricados no Brasil se deve a várias razões: alto custo da matéria-prima, preços praticados pela indústria de autopeças; o "efeito escala de produção" (aqui se produz menos do que em mercados como Alemanha e Japão); greves; congelamento de preços... Ou seja, a indústria automobilística nacional, que jamais conseguiu retomar a produção alcançada em 1979, superior a um milhão de veículos, não tem culpa nehuma. Acredite quem quiser.

*Sem explicar porque um Santana daqui custa mais do que um Santana alemão, o sr. Mendonça diz, entretanto, que um Kadett SLE 1.8 custa no Brasil (descontados os impostos) 26% a menos do que o equivalente alemão. Só que ele citou preço de abril, obviamente defasado, porque aconteceram dois aumentos de preços de lá até agora - sem contar o novo aumento que as montadoras estão pedindo agora.

*Em dólar, portanto, o Kadett está mais caro (US$ 13,182) do que se diz no artigo (US$ 12,525). Além disso, sai de linha agora na Europa porque está velho com seus sete anos de exist~encia. E o Kadett brasileiro não tem injeção eletrônica nem escapamento antipoluente. Defasado tecnologicamente, ele custa 22,30% mais barato do que o alemão. Aceitando os argumentos, comprova-se que a indústria brasileira consegue esse milagre com o Kadett. Mas não o consegue com outros carros, como o Santana ou o Monza, para ficar nos exemplos citados. Muito estranha essa discrepância. - que continua inexplicável.

*Eu devo desculpas, no entanto, ao sr. Mendonça. Acusei-o de não ter respondido às indagações de leitoras feitas em abril do ano passado. Ele realmente produziu artigo sobre o assunto e a Folha o publicou no dia 12 de maio de 1990 no então caderno de Economia. Só agora pude ver o artigo porque estava fora do Brasil na época, no encontro de ombudsman nos Estados Unidos. Nele o sr. Mendonça explicava o alto custo (os argumentos são quase os mesmos dos de hoje). Deu uma resposta. Não vi e me penitencio.

*Outra observação a ser feita é sobre o ágio. Na resposta que eu desconhecia o sr. Mendonça afirmou: "Ágio é palavra, pois, que não existe no dicionário dessas empresas as montadoras. Se o ágio existe, ele está no comércio do varejo." No seu artigo de sexta-feira o presidente da Anfavea afirma que o ágio o preocupa. Muito bom. Depois de um ano e dois meses, a Anfavea reconhece a existência do ágio. E mais, se então o ágio existe é porque existe demanda. Se existe capacidade ociosa de produção basta aumentar a produção que o ágio acaba.

*A Anfavea também lamenta não poder, por lei, estender o desconto de 10% diretamente na fábrica para todas as categorias profissionais. "Não é possível generalizar o sistema, como parece recomendar o ombudsman, pois nesse caso estaríamos acabando com a rede de concessionários da qual depende todo o serviço de atendimento ao consumidor".

*Neste caso, para encerrar o assunto (cuja discussão em nada adiantou porque as "carroças" produzidas no Brasil continuam ruins, caras, com serviço pós-venda a desejar e com ágio), eu sugiro às montadoras que acabem com esse desconto especial de 10% para jornalistas. Por que esse privilégio?

*Pistoleiros - O comandante geral da Polícia Militar do Pará, coronel Cleto Fonseca, afirmou ontem que os pistoleiros responsáveis pelo massacre de seis vigilantes da cooperativa de garimpeiros de Manelão, no município de senador José Porfírio (PA), distante 800 km ao sul de Belém, conseguiram fugir do cerco policial montado há uma semana.

*Prefeitos - O governo federal preparou hoje uma concentração de prefeitos do interior de São Paulo em São José dos Campos (85 km a nordeste de São Paulo). Serão assinados convênios com nove prefeituras municipais para construção de 2.663 casas populares, no valor total de Cr$ 9 bilhões. Foram convidados 368 prefeitos do Estado.

*Ossadas - O delagado de polícia de Tucuruí (PA), Paulo Mascarenhas, 46, vai abrir inquérito para tentar identificar cerca de 80 ossadas humanas localizadas insepultadas por um coloco na rodovia Transamazônica, a 50 km dentro da floresta. O colono, cujo nome não foi revelado, estava procurando um local para fazer um roçado quando encontrou o "cemitério a céu aberto".


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