Folha de S. Paulo


Pequena contribuição ao jornalismo dito popular

Quem costuma acompanhar o "Jornal Nacional", da Globo, deve ter se espantado, na última semana, com o seu tamanho (mais longo) e com as tragédias, dramas e casos policiais em forma de manchete. O espichamento do telejornal tem a ver com a concorrência da novela "Carrossel", do SBT. Em quatro semanas, segundo o Ibope, a média de audiência do SBT subiu de seis para 19 pontos entre 20h e 21h e a média na Globo caiu de 54 para 43 pontos, conforme dados publicados pelo "Jornal do Brasil". Mas o espichamento e a concorrência da novela pouco têm a ver com o assunto de hoje - mais jornalístico.

O telejornal da Globo preocupa-se em popularizar-se por causa de um fenômeno antigo que adquire novas cores no Brasil de aqui e agora, o do jornalismo dito "popular". A sua renovação começou nos jornais impressos. No Rio, ela adquiriu, em especial, tratamento fotográfico diverso com o jornal "O Povo na Rua", em 1989. Em São Paulo, a novidade se deu com a renovação completa (gráfica e conteudística) do "Notícias Populares", desde março do ano passado. Na televisão, foi reintroduzida pelo "Aqui Agora", do SBT, no final de maio. Ela invade hoje o "Jornal Nacional", reduto do mais tradicional dos jornalismos.

O "Jornal Nacional" não tem chegado aos requintes do "Aqui Agora" - que tem comentarista econômico o boxeador Maguila -, mas começou a investir fortemente nos assuntos de polícia. Em reportagem publicada no "Jornal do Brasil" de sexta-feira, a jornalista Márcia Cezimbra notou que muito do que a Globo colocou no ar nessa última semana não é recomendado pelo seu manual, no qual se desestimula a citação de nomes de crianças envolvidas em crimes ou vítimas de crime, por exemplo.

Redes menores, como a Record, também começam a aumentar a dose de casos policiais em seus noticiários. Os telespectadores passaram a receber um material de tragédia cotidiana mais encorpado. Não que a criminalidade tenha aumentado consideravelmente. Aumentou a sua exposição na tevê. Os problemas inflacionários e a política nacional estão cedendo espaço na televisão para algo até poucas semanas atrás tratado em todas as tintas apenas pela imprensa sensacionalista.

O jornal "O Povo na Rua", por exemplo, realiza um competente trabalho fotográfico em branco e preto trazendo o horror do submundo carioca para as bancas. São cabeças decepadas expostas em cima de mesas de sinuca; cachorros lambendo a boca aberta de cadáver metralhado; ossadas carcomidas; corpos queimados sem olhos e com membros retalhados - um realismo perverso em que os fotógrafos buscam inovar nos ângulos para impactar o leitor.

O "Notícias Populares", O "NP", misturava até dezembro passado política, sexo e polícia em suas manchetes: "Povo ri à toa com os ricaços apavorados"; "Deu rapidinha na sogra de 68 anos"; "Castrou o morto metedor"; "Xixi na boca arma o circo do velho"; Amiga fiel faz sete horas de chupetinha"; "Meteu chumbo no tesão"; "Comeu o filho da vizinha"... Analisando suas edições de outubro e dezembro de 1990, a Justiça paulista decidiu censurá-lo, determinando que fosse vendido dentro de um envelope lacrado sempre que exibisse "cena de violência e de sexo" ou se expressasse "por meio de termos obscenos ou chulos".

Laura Caprighone, administradora do "NP", acha que a decisão do juiz de São Paulo chegou quando o jornal havia ultrapassado essa fase mais cínica ("nós discutimos muito na Redação o cinismo excessivo em cima das tragédias", diz) e se preocupava mais em traduzir na linguagem falada do cotidiano das pessoas, incorporando as gírias, um mundo que a classe média não conhece e não vive, a realidade da população pobre paulistana, o seu público alvo.

Laura considera que o país não tem tradição de sucesso na imprensa dita popular, ou sensacionalista, como na Inglaterra, onde um jornal como o "The Sun" vende quatro milhões de cópias. Acha que a imprensa popular brasileira "sempre apostou na burrice, no preconceito e no atraso dos leitores". No "NP", afirma, realiza-se um exercício diário para evitar que o jornal não seja mais a "escória da categoria". Conforme Laura, a ideia é conferir verossimilhança à imprensa popular, fazer um produto bonito e jornalisticamente verdadeiro.

Já os jornalistas, em especial, torcem o nariz para experiências do tipo "NP" ou "Aqui Agora". Têm pouca abertura para discutir a sério o que ali se faz. Evidentemente, ante manchetes do tipo das que dava o "NP" ou mesmo das humilhações provocadas por Jacinto Figueira Jr. Nas vítimas de suas reportagens no SBT, não há muito para discutir em termos de ética. Houve edições do "NP", por exemplo, circulando com fotos de fetos encontrados em latas de lixo, coisa de um mau gosto acima de qualquer discussão jornalística. Mas existem edições de capas bonitas, como a do pequeno menino-ET - cuja foto, ao natural, era quase do tamanho da capa do jornal.

No entanto, há alguns princípios éticos acima da decadente discussão ideológica - que o próprio jornalismo quando se diz "popular" tende inconscientemente a perpetuar - e que deveriam estar na base de qualquer tipo de jornalismo, baseado ou não nas tragédias cotidianas. São coisas simples as quais o ex-candidato Enéas, agora no "Aqui Agora", sabe e segue, mas gente como Jacinto Figueira Jr. Ou Gil Gomes desconhecem.

Esse tipo de jornalismo em nada perderia se levasse em conta apenas três observações, todas elas em benefício não só dos leitores mas da própria audiência. A saber:
- Sempre vai existir uma outra "verdade" quando uma "verdade"estiver em jogo. Ouvir o outro lado - mesmo quando alguém acha que está ao lado do povo - é dever de quem não julga, mas mostra os fatos. E jornal (impresso, falado ou televisionado) não é Tribunal de Justiça nem instituição de caridade.

- As autoridades policiais não são donas da verdade nem fontes inquestionáveis. E Boletim de Ocorrência não é tábua da lei.

- O ser humano - e o seu sofrimento - merecem respeito, seja ele bandido, travesti ou vítima. Todos têm o direito de serem tratados com respeito pelos meios de comunicação e o direito (constitucional) de sofrer na privacidade.

A realidade do Brasil que a elite e as classes médias não veem e não sentem é uma realidade brutal. Uma imprensa que revele essa miserável condição de vida estará ajudando a reinventar o Brasil. Que o faça com dignidade.


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