Folha de S. Paulo


Sobre a carta aberta ao presidente

Em um ano e sete meses nesta atividade de atender e investigar reclamações de leitores, eu jamais vivi um dia como o de quinta-feira passada. A Folha trouxe na capa a "Carta aberta ao sr. presidente da República", assinada por Otávio Frias Filho, diretor de Redação. Eu esperava, como sempre, atender ais leitores queixosos, discordantes, àqueles em busca do catalisador natural de descontentamento em relação ao jornal. Pois bem, dos 56 telefonemas que atendi pessoalmente na quinta-feira, 33 foram sobre a carta. Todos de apoio.

Alguns leitores me deram conta da repercussão da carta em suas casas, seus serviços ou escolas. Um estudante de segundo grau pediu autorização para copiar a carta e distribuir entre os colegas. Uma assinante se dispôs a trocar suas férias para trabalhar em uma campanha pró-Folha. Um leitor disse tê-la fixado no mural da firma. Um outro solicitou a publicação de mais cartas abertas, contra a prefeita Erundina, contra o governador Fleury...Todos estavam a favor da carta e queriam expressar solidariedade. A quantidade de telegramas, faz, telex, telefonemas e cartas que inundou a Redação tornou o espaço tradicional do Painel do Leitor pequeno para abrigar a totalidade das manifestações - você viu.

Na sexta-feira a coisa mudou um pouco. Comecei a receber telefonemas de críticas - foram três. Um senhor de São Paulo deixou seis recados seguidos e desaforados na secretária eletrônica. Quando o chamei de volta, ele me disse, civilizadamente, que estava achando o jornal muito parcial. A Folha já teria prejudicado Paulo Maluf e o Partido dos Trabalhadores e agora estaria prejudicando Collor, o único a fazer "alguma coisa". Uma senhora (se apresentou como médica, não quis dar o número do telefone, e duvido que tenha me dito seu verdadeiro nome) acha "pouco" o que Collor está fazendo. Por ela, "todos os jornalistas estariam na cadeia e ele (Collor) tinha é que fechar esse jornal". O terceiro queixoso, advogado no interior de São Paulo, considera "esse negócio contra Collor uma histeria coletiva". Para ele, a Folha "parece porta-voz de um poderoso grupo para derrubar o homem", coisa na qual ele mesmo diz não acreditar.

Muitos me perguntaram, também, quais as razões imediatas da carta. Queriam saber se aconteceu algum "fato novo". Não. O desdobramento do processo vem sendo relatado com toda a transparência. Pode não ter ficado muito claro, no entanto, a maneira como o governo federal pressiona o jornal. Ela vai desde o boicote cerrado de informações jornalísticas quanto aos recados do objetivo final: colocar na cadeia o diretor de Redação. Chegam recados seguidos de assessores de Collor nesse sentido.

Os objetivos de rias Filho ao compor a carta eram três. Primeiro, politizar novamente o caso. Segundo, dar-lhe evidência, porque a mídia estava silenciosa e, ao tratar do assunto (como fez a "Veja"), tirava-lhe o conteúdo político. Terceiro, polarizar a questão porque a posição do governo era a de encurralar os jornalistas processados. A carta foi escrita na madrugada de 16=5 para 16 de abril, de uma só vez, e recebeu duas revisões, uma jurídica e outra estilística, feitas por Frias Filho após ouvir os advogados que acompanham o caso. Saiu dez dias depois e, ironicamente, quando se soube que a "Gazeta de Alagoas", o jornal da família Collor, havia republicado as mesmas notas do Painel Econômico lançadas pelo governo contra a Folha.

A repercussão acabou sendo maior do que a esperada. Conte, nas palavras de apoio, quantas vezes se dala da coragem de Frias Filho, quantas vezes se repete a imagem segundo a qual ele interpretou algo entalado na garganta. Isso mostra, ao menos, um modo disseminado. E, quando se fala em governos democráticos, não há porque temê-los, mas sim respeitá-los. O mais preocupante, no entanto, é o absoluto silêncio da mídia (principalmente emissoras de televisão e grandes jornais) em relação à carta. Ela foi sem dúvida uma grande notícia na quinta-feira, mas notícia inexistente na mídia brasileira. Revela o tamanho do medo, ou da vassalagem.

Os grandes jornalistas do passado dos quais Frias Filho procurou alcançar o exemplo, conforme escreveu na carta, são Jean-Paul Marat e Carlos Lacerda. Contra Marat foi organizada a conspiração do silêncio. Contra Lacerda, os ditadores de plantão lançaram tiros e tiraram o seu direito de fazer política. Os tempos seriam outros mas a necessidade de uma determinação ferrenha pela defesa da liberdade de expressão continua de pé. Aqueles que se calam, consentem.

RETRANCA
Entre as atribuições dos ombudsmen de imprensa se inclui a de participar de reuniões com equipes de Redação. O meu primeiro encontro com as equipes de jornalistas da Folha deu-se quinta-feira passada, quando discutiu-se algumas observações sobre as mudanças por que passa o jornal desde fevereiro. Apresentei seis tópicos para reflexão dos jornalistas. Resumidamente, eles são os seguintes:
1. A Folha está criando novos hábitos de leitura e desmontando a tradicional forma de leitura do jornal impresso, Muitas vezes, a lógica de apresentação de determinados fatos (que hora aparecem no caderno Brasil, ora em Dinheiro, por exemplo) pode estar muito clara na cabeça dos jornalistas mas não aparece com a mesma clareza para os leitores. Critiquei também o fato de determinadas seções aparecerem em cadernos diferentes dependendo do dia e do espaço disponível. Quando se muda o hábito de leitura, é preciso criar novo hábito, dar ao leitor a segurança de saber ler o jornal modificado e saber encontrar assuntos do seu interesse no lugar apropriado.
2. Ao tentar espelhar na primeira página tudo o que considera importante, o jornal pode "matar" os principais assuntos do dia. O fato principal merece tratamento espacial mais destacado. Dar tudo embolado na primeira página pode acabar significando não dar nada.
3. Continua faltando amarração ao noticiário. Assuntos são dispostos lado a lado nas páginas sem dar a impressão de ordenamento lógico, sem que fatos correlatos (e suas interpretações) sejam aglutinados. Isto às vezes poder ser feito num único texto.
4. Por mais provado que seja que o jornal não privou o leitor de nada do que ele tinha anteriormente, a impressão é a de perda. Leitores sentem falta do caderno de Esportes, Economia e Negócios. Essa situação precisa ser revertida de alguma forma para ficar claro ao leitor que nada foi perdido.
5. A Folha deu um grande passo rumo ao público jovem tornando semanal o Fovest redesenhando no Folhateen. Mas, contraditoriamente, não está cuidando do jovem-adulto, principalmente do consumidor da indústria da cultura. A Ilustrada precisava olhar com mais carinho para esse público. O caderno de artes e espetáculos já foi melhor.
6. Quanto ao aspecto gráfico, o jornal necessita ainda de um melhor acabamento. Isso se estende ao estilo dos textos noticiosos (continua duro, pedregulhoso) e à quantidade de erros de grafia, gramática e digitação. (Nesse ponto, conforme apurou o DataFolha, há uma boa notícia: a média de erros de grafia e digitação continua diminuindo. Ela foi de 138 erros por edição em 1990 e nos primeiros três meses de 1991 caiu para 117 erros).


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