Folha de S. Paulo


Exercício de guerra

Aos observadores atentos da guerra não escapa a impressão de que a mídia brasileira está profundamente influenciada pela propaganda dos aliados na guerra do Golfo - a própria palavra "aliados" carrega significado positivo. O principal material informativo com o qual trabalham os jornais e as redes de televisão bem de agências, jornais e jornalistas americanos ou ingleses. Isso pasteurizou a cobertura. Diversas vezes, a mídia brasileira tem sido mais real do que o próprio rei.

Em todo caso, em algumas ocasiões, a brava imprensa brasileira não se deixa dobrar pela propaganda aliada. Pequena memória das manchetes ou títulos de primeira página dos quatro principais jornais, lidos em conjunto, dia após dia, mostra o outro lado da guerra. Convido vocês ao exercício dessa leitura. Os enunciados são os mesmos dos jornais, apareceram todos em primeira página, sequencialmente, ipsis-litteris.

Exercício 1 - Na semana retrasada, o Iraque ganhou a guerra a despeito das milhares de missões aliadas. Veja a sequência de títulos na capa da Folha (de domingo, 27 de janeiro, até sábado, 2 de fevereiro): Iraque dispara mais mísseis contra Israel e Arábia Saudita; Iraque vai recorrer às armas químicas, afirma rádio oficial; Iraque mantém seu poderio militar; OLP entra na guerra com ataque a Israel; Iraque começa ofensiva por terra com ataque à Arábia, EUA reconhecem 12 mortes; Iraque concentra forças na fronteira da Arábia Saudita; Vice dos EUA admite usar armas nucleares.

Exercício 2 - Em "O Globo", os aliados também levaram a pior. A sequência: Aliados podem ficar sem água potável; Iraque usará as armas proibidas; Israel diz que matará Sadam se sofrer ataque químico; URSS teme a destruição do Iraque e já adverte aliados; Começa a batalha no deserto; Iraque avança com mais de 8000 blindados; Iraque inicia novo ataque no deserto.

Exercício 3 - Em "O Estado de S.Paulo", no mesmo período, o Iraque só foi contido pelos aliados no sábado, dia 2. Falta um título porque o jornal não circula (ainda) às segundas-feiras: Petróleo em chamas se espalha no Golfo; EUA e Israel articulam represálias; Renuncia ministro francês da Defesa; Tropas do Iraque tomam porto saudita; Blindados iraquianos avançam contra aliados; Aliados detém ofensiva dos iraquianos por terra.

Exercício 4 - Só no "Jornal do Brasil" o Iraque não levou de todo a melhor. A sequência: Óleo do Golfo está em chamas; EUA bombardeiam oleoduto para pôr fim ao vazamento; Sadam ameaça aliados com arsenal químico e nuclear; EUA fazem oferta de paz ao Iraque; Combate em terra causa a morte de doze americanos; Iraque prepara a luta terrestre; EUA param avanço do Iraque sobre a Arábia Saudita.

Exercício 5 - Na última semana, na Folha, os aliados continuaram levando a pior. Veja os enunciados de primeira página de domingo passado até ontem: Irã ameaça ir à guerra com apoio a Sadam se Israel atacar o Iraque; EUA perdem seu primeiro B-52 no conflito; Iraque diz que prepara mais ataques; Técnicos do Brasil ajudaram Iraque a aperfeiçoar mísseis; Frota dos EUA chega mais perto do Iraque; França prevê ofensiva por terra este mês; Pravda critica ação americana no Golfo.

Exercício 6 - No "Estado", a coisa foi mais na base de uma semana pró-Iraque e outra semana pró-aliados - bem balanceada. De domingo até ontem, os enunciados estiveram ao lado das forças anti-Iraque: Bombardeio aliado quase atinge base na Arábia Saudita; Artilharia naval americana entra em ação no Golfo; Aliados preparam ação por terra; Invasão será em noite sem luar; Cresce bombardeio da Marinha ao Kuwait; EUA planejam ataque com o mínimo de baixas.

Exercício 7 - Idem no "Globo". Na última semana, a iniciativa ficou com os aliados: Post: capacidade militar do Iraque surpreendeu EUA; Pentágono: meta não pé derrubada de Sadam; Canhões do Missouri preparam a invasão; EUA: 45% a favor de armas nucleares no Golfo; Força de 17 mil fuzileiros prepara invasão do Kuwait; Aliados vão usar nova bomba que gera nuvem de chamas; Força aliada intensifica bombardeio ao Iraque.

Exercício 8 - O "JB" preferiu criar a expectativa do ataque aliado por terra: Irá propõe a Sadam saídas para a paz; Míssil iraquiano fere 29 na Arábia Saudita; Navio americano bombardeia defesa iraquiana no Kuwait; Bush envia chefes militares a Riad; Golfo entra em contagem regressiva; Cheney e Powell chegam ao front; Ataque só começará com risco mínimo de baixas.

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A propósito de guerra e mídia: um pesquisador americano, Godfrey Hodgso, tem interessante imagem para a imprensa na história: "A mídia não é antagonista nem protagonista mais mais exatamente vítima dos tempos e dos eventos".

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Tentei apresentar os maiores equívocos desta Folha, domingo passado, durante o mês de janeiro. Na última semana diminuíram os erros mas o noticiário também arrefeceu. A ponto de levar à suspensão do caderno Guerra por falta de noticiário suficiente para encorpar o suplemento diário. Mas os equívocos - essa constante no jornalismo, essa impossibilidade de se fazer jornal sem erros - não acabaram. Os principais problemas estão na omissão e na hierarquização no noticiário. A saber:
1. Minimizou-se os problemas de abastecimento no Iraque. Sadem Hussein proibiu a venda de combustíveis e óleo de para calefação. A notícia foi dada sem o estardalhaço necessário. Era preciso empregar os meios disponíveis (informantes, despachos das próprias agências, relatos de refugiados) para saber a extensão dessa medida e os problemas dela advindos. Se Sadam Hussein cortou o combustível e aquecimento para a população civil, então a situação do Iraque pode ser mais dramática do que pinta a propaganda americana.
2. A Folha deixou de lado análise do general Norman Schwarzkopf segundo a qual os aliados estariam com a síndrome do cão raivoso. Ela significa temor frente às tropas iraquianas, tão imprevisível quanto cachorros loucos.
3. Título de análise da edição de terça-feira: "Bagdá quer inviabilizar a tática inimiga". Mais óbvio impossível. Seria notícia e, portanto, título se Bagdá quisesse "viabilizar" a tática inimiga.
4. Por falar em tática, a Folha deixou de lado outra importante declaração do general Schwarzkopf. Ele acha que Sadam Hussein planejou essa guerra em termos táticios e não pensou em termos estratégicos.

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Descontando a propaganda aliada, vale a pena acompanhar a guerra com a ajuda de segundo jornal, como a "Gazeta Mercantil". Ela republica o melhor material do diário econômico inglês "Financial Times", o mais respeitado da Europa. Como reportagem sobre a deliberada minimização de quantidade de baixas feita pelos aliados. Isso teria a ver com a vontade de evitar a obsessão da contagem de corpos observado durante a guerra do Vietnã mas representa a intenção dos sauditas de não ferir o mundo árabe com a divulgação de muitas baixas. A decisão "parece ter" a cumplicidade de Bagdá. Sadam Hussein estaria minimizando também o número de mortos, civis e militares, para reduzir a repercussão do impacto da ofensiva aliada. Outro texto na "Gazeta", despacho integral da agência Reuter, revelou que gastos com a guerra "devoraram" de 15 a 20% do Produto Interno Bruto da Arábia Saudita em 1990.

Retranca
A Folha tem demonstrado preocupação com os deficientes físicos. No dia 9 de setembro de 1990 o caderno Cidades publicou reportagem para mostrar que lhes falta apoio municipal. No mesmo texto, entretanto, cometia ato falho.

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Ao reproduzir declaração de deficiente sobre a imagem disseminada de que deficiente é inútil, a reportagem exorbitava: "O advogado Caio Leonardo Bessa, 26, engravatado em sua cadeira de rodas..."

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Em outra ocasião, em Esportes, no Natal, a primeira frase de reportagem sobre Clay Regazzoni, ex-piloto de Fórmula 1 e atual piloto de ralis em deserto, estigmatizava: "Confinado há dez anos em uma cadeira de rodas..."

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Recebi carta da coordenadora-geral do Núcleo de Integração de Deficientes, de São Paulo, Ana Maria Morales Crespo, questionando esse tratamento enviesado.

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Mesmo defendendo os deficientes, os jornalistas revelaram, de maneira inconsciente, o preconceito. Se Regazzoni pilota carros e sua profissão continua sendo piloto, então não está "confinado" à cadeira de rodas. E o advogado, que também usa cadeira de rodas, não pode usar gravatas?

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Morales Crespo reclama da "estranheza" que tal afirmação possa provocar em leitor mais alerta, "uma vez que nem de longe a reportagem versa sobre trajes em geral ou gravatas em particular". Além disso, complementa, "nenhum outro entrevistado tem traje mencionado pelo jornalista". Este alerta é bastante justo.


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