Folha de S. Paulo


A primeira morte de Paulo Francis

Uma nota de duas linhas e meia no Painel informou sábado passado o desligamento de Paulo Francis deste jornal. No mesmo dia este ombudsman começou a receber telefonemas. A maioria dos leitores queria saber as razões. "Senti muito a saída e sinto falta de explicação mais ampla", desabafou a publicitária Maria Cristina Miraglia, expressando sentimento comum.

A direção do jornal deu mais informações em Nota da Redação incluída no Painel do Leitor de quinta-feira. Francis rompeu contrato de trabalho válido ainda por dois anos a pedido dele mesmo, contrato renovado após proposta de outra publicação. Ou seja, cobriu-se a oferta. Ele recebeu então nova proposta e a Folha optou por não retomar negociação já concluída. "Desde o início do ano vinham crescendo as divergências de natureza editorial entre Folha e o correspondente em Nova York", finalizou a nota.

Mas os leitores querem mais. Desejam saber para onde ele foi e entender por que se descartou alguém cuja história se confunde com a do jornal durante 14 anos. Pois Francis mudou-se para "O Estado de S.Paulo". Para ganhar mais. Conforme informou o "Jornal do Brasil", ele troca de casa "convencido por uma estratégia que envolveu cinco dígitos de pura verdinha".

A Nota da Redação falou em divergências de natureza editorial -não confundir com natureza política e nem linha editorial. Em conversa com este ombudsman, o diretor de Redação, Otavio Frias Filho, concordou em dar mais detalhes sobre as divergências. Elas na têm a ver com as críticas feitas por este ombudsman a Francis no final de 1989 e retomadas no início deste ano. Sobre essa "polêmica", por exemplo, Francis achava equivocadamente que as críticas estavam em harmonia com o pensamento da direção do jornal. Nunca entendeu a independência do defensor dos leitores, ele que conhece de sobra a sua própria independência em relação à linha do jornal, ele que sabe da liberdade dada aos articulistas da casa.

O problema mais importante, no entanto, surgiu em momento dos mais delicados, quando o governo Collor disparou dois processos contra o jornal. Francis deu entrevista à Revista d' e sapecou nota oito para Collor e cinco para a Folha (nas realizações) apesar de dez (nas intenções). Não houve uma palavra de solidariedade contra evidente perseguição política.

Outro episódio que contribuiu a azedar o relacionamento foi o dos ataques desfechados contra a atriz e empresária Ruth Escobar. Os termos foram interpretados pela direção como muito pesados.

Aconteceram ainda alguns problemas do ponto de vista funcional. O correspondente queria passagens aéreas fora de contrato; almoçou com o presidente Collor sem avisar a Redação; veio ao Brasil sem comunicar a viagem... O relacionamento se deteriorou e o jornal sentiu no correspondente "atitude de quem quer romper". Ele negou isso à direção e considerou o fator financeiro fundamental. No dia em que o "Jornal do Brasil" noticiou sua saída, 5 de dezembro, ele desconversou quando questionado em telefonema (particular) de integrante da direção. Contudo, um dia antes, Francis assinara e enviara carta de desligamento via entrega expressa.

Frias Filho considera, no entanto, que a saída tem um aspecto positivo porque libera forças produtivas. Antes dele sair a Ilustrada já se preparava para lançar outro colunista, Marcelo Coelho, 31 anos, membro do Conselho Editorial e comentarista de pena ácida e observações agudas. O jornal optou por não buscar "outro" Francis, ou o "anti-Francis". Resolveu partir para solução diferente na busca do novo.

Não entro no mérito das divergências. A Folha perdeu, é evidente, o seu segundo índice de leitura (o primeiro é Joelmir Beting). Isso tem sua importância. Detectei a decadência do articulista, mas ele era o mais polêmico do jornal. Leitores reclamam, faz tempo, de sua arrogância, seus preconceitos, chutes, tudo discutido à exaustão quando sugeri seu consumo como ficcionista e não como jornalista. Tentei mostrar que sua graça -e talento-estava realmente no fato de ser cronista brilhante, um ficcionista de jornal. Ele não gostou das observações e respondeu naquele estilão descabido.

Outras páginas vão abrigar seu texto. O maior problema, para Francis, será sua nova casa. O "Estado" investiu no cronista na expectativa de atrair leitura. Levando em conta a "personalidade" do concorrente é fácil ensaiar hipóteses. Arrisco pequeno exemplo. Os problemas vão começar no primeiro palavrão. O próprio "Estado" lembrou seus leitores na quarta-feira, na primeira nota do seu Painel (a Coluna do Estadão) que seu "Manual" recomenda a não publicação de "palavrões nem vulgaridades". O que será do texto de Francis sem essas duas marcas registradas? Se ele obedecer o "Manual", e deixar de escrever como escreve, está perdido. Se começarem a cortar suas expressões características, idem. A Folha é bastante liberal no uso de palavras expressamente proibidas no concorrente -uma das marcas de modernidade da Folha, daquelas que garantiam a própria sobrevivência de Francis. A Folha permite o uso de expressões incorporadas ao linguajar cotidiano, tão comuns que perderam o seu caráter originalmente vulgar. O concorrente não permite. Ainda não? A conferir.

Os problemas não param aí e nem é o caso de alongar-me nas outras diferenças possíveis no "Estado", jornal desacostumado com o direito de resposta necessário em casos de agressões pessoais, ataques às minorias étnicas, racismo, distorções, preconceito... Um leitor carioca resumiu a coisa dizendo que a Folha o mantinha pelas suas virtudes e o "Estado" o leva por seus defeitos. Pode ser. Além do mais, os leitores típicos de Francis, na Folha, acostumados pelos anos de convivência, "descontavam" os excessos e aproveitavam de cada crônica seus momentos de inteligência e riqueza de interpretação. O leitor do "Estado" -cuja idade média é superior da Folha, e cujo perfil é reconhecidamente conservador-terá a mesma paciência?

O mais grave, para Francis, é outra coisa, uma perversidade típica no "Estado". Algo operado à revelia do jornal mas com rara eficiência: a morte jornalística de seus articulistas. Eles estão lá, são lidos, mas nada repercute. Ninguém comenta, parece que ninguém viu. Francis não será mais discutido como sempre foi. Esse fenômeno acachapante acontece, agora, com antigos campeões de audiência -como Luís Fernando Veríssimo e Telmo Martino. Ambos "aconteciam" mais quando escreviam para outras publicações.

Não é que este ombudsman se pôs a fazer previsões? Muito temerário. Mas já está escrito e o tempo virá para conferir. De uma coisa, porém, não tenho dúvida. Aquele Paulo Francis inflado pela Folha começou a murchar ao decidir se abrigar no redecorado mausoléu que se transformou o "Estado".


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