Folha de S. Paulo


Sobre camelos e dromedários

Em tempos de crise no Golfo, recessão interna e externa, inflação crescente, debate político na TV, cabe pausa para assunto aparentemente menor Vou falar do camelo, bicho paciente, símbolo da sobriedade e, garante tradição milenar, sinônimo de personalidade difícil e até de pretensão -quando não serve para definir estupidez...

Jean Chevalier e Alain Gheerzbrant, velhos garimpadores de mitos, contam que o camelo já foi considerado até animal impuro -porque os pagãos o consagravam aos seus falsos deuses. Mas explicam ser o camelo, antes de tudo, a montaria que ajuda na travessia do deserto onde é possível ir atrás do centro oculto, a Essência divina. Paisagem do camelo, o deserto também comporta seus símbolos: desprendimento absoluto ou amplidão superficial estéril da qual se pode buscar a realidade. Pensando nos desertos do Oriente Médio, tavez os soldados americanos a encontrem por lá.

Mas a realidade de hoje é outra. Francisco Medeiros Rosas da Silva tem 13 anos e cursa a sétima série. Mora em Itapetininga, interior de São Paulo, longe de camelos e desertos. Leior da Folha, em setembro ele viu reportagem sobre o comércio de camelos na Arábia Saudita -negócio inabalável mesmo com a crise instalada. A página incluía foto de animais definidos na legenda como camelos.

"Os animais da foto não são camelos e sim dromedários", sentenciou Frederico em carta ao ombudsman. "Moro numa fazenda e gosto de animais selvagens e domésticos". Explicou as diferenças. "O dromedário tem uma única corcova enquanto o camelo tem duas. O dromedário tem as pernas mais longas do que as do camelo. O pescoço do dromedário é mais longo e sem pelos, mas o do camelo é curto e cheio de pelos, principalmente no inverno. O dromedário possui calosidades nas articulações das pernas que funcionam como 'almofadas' quando se deita na areia". Seguia enumerando a de que ambos são animais perfeitamente adaptados para ambientes áridos e inóspitos como o do deserto.

Mandei cópia da carta à Redação para conhecimento. Recebi resposta assinada pelo jornalista Andrew Greenlees, editor-adjunto de Política. Ele escrevera a reportagem sobre o comércio de camelos quando estava na Arábia Saudita cobrindo o conflito com o Iraque. O relato de Greenlees em resposta ao leitor é pungente: "Quando cheguei ao mercado de Holuf, na Arábia Saudita, notei que alguns animais ali tinha apenas uma corcova. Com a ajuda de intérprete, perguntei a dois mercadores e esses animais não seriam dromedários. Os mercadores responsderam que utilizam apenas a denominação 'camelo'. Insisti na tentativa de diferenciar os animais, mas os mercadores responderam que desde a 'época do pai de meu avô estes animais são camelos'. Na reportagem -continua Andrew–, acabei assumindo o critério dos mercadores, mas acho que, cientificamente, nosso leitor tem razão quanto à foto. O mercado, no entanto, era predominantemente de camelos e foi por isso que generalizei".

Nesse momento, como não tinha a menor dúvida de que camelos têm duas corcovas e dromedários apenas uma, eu já havia escrito ao jovem leitor dizendo ter sugerido à Redação retificação do erro. Minha sugestão foi acatada pela direção do jornal e transferida para a editoria de Exterior, responsável pela publicação da reportagem.

No dia seguinte não vi a retificação. Recebi, porém, o "dossiê camelo" de volta e, ainda mais avantajado. Foi-lhe acrescentado relatório assinado por Hélio Schwartsman, editor-assistente de Exterior. Acompanhava xerox de página de enciclopédia Barsa. Ali, aparece foto de camela, apresentada como dromedário, entre parênteses. E se pode ler que os camelos podem ter apenas uma corcova. Ou seja, o dromedário também é camelo. Textualmente: os camelos "têm no dorso duas corcovas, como o C. bactrianus, camelo verdadeiro da Ásia Central e Sul da URSS, ou uma corcova como o C. dromedarius do Sul da Ásia e Norte da África...". O jornalista acrescentou algumas palavras para corroborar a negativa de retificação: "como mostra a documentação anexa, é lícito chamar os ditos dromedários de camelos. E mais, o animal natural da península Arábica é o camelo, assim ao chama-lo de dromedário estaríamos ignorando uma tradição que remonta à Bíblia e às Mil e Uma Noites".

Não acreditei e fui conferir na Enciclopédia Britânica. O verbete sobre camelos é mais completo comparado aos da Barsa, traz mais indicações sobre o animal de uma corcova, "o camelo árabe, ou dromedário", o tal Camelus dromedarius em latim. Na Britânica tem até foto do camelo árabe, com uma única corcova. Camelo ou dromedário, no caso da legenda da foto no jornal, tratando-se de camelo árabe portanto, tanto faz.

Parodiando o poeta, entre o desejo do leitor e a realidade impressa caiu a sombra esclarecedora. E, dessa vez, a Folha não errou. O jornalista Greenlees fez bem em acreditar nas suas fontes, os sábios mercadores de Holuf.

RETRANCA

-Na quarta-feira os jornais publicaram notícia das mais importantes no ano: o aumento da concentração de renda no Brasil. A revelação veio à luz com a divulgação da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 86 mil residências. Conforme o instituto, a concentração de renda atingiu em 1989 o índice mais alto já registrado no Brasil. O fosso entre ricos e pobres se alarga perigosamente. Somente 658 mil pessoas com trabalho remunerado concentram 17,3% da renda enquanto 6,8 milhões de trabalhadores ficam com 0,6% da renda nacional. A média de ganho entre os 10% mais pobres é de 0,3 salário mínimo por mês. Ou seja: o equivalente a 18 dólares no câmbio turismo -este sim, dezoito dólares, o real salário mínimo no Brasil!

- A notícia revelada pelo IBGE foi manchete na Folha ("Aumenta no país distância entre ricos e pobres"), em "O Globo" ("1989 teve recorde de concentração de renda") e no "Jornal do Brasil" ("IBGE mostra que concentração de renda aumentou"). Mas não sensibilizou os editores de "O Estado de S.Paulo" que não destacaram a novidade e lhe conferiam o direito de participar apenas de pequeno título no meio da primeira página: "Concentração de renda cresceu, revela IBGE".

- A grande imprensa tem acompanhado os problemas do presidente Collor com seus planos econômicos e o Congresso. No entanto, semana passada, a publicação que melhor conseguiu sintetizar os problemas não foi um dos quatro grandes jornais, mas sim o paulistano "Jornal da Tarde". Suas manchetes de quinta e sexta-feira, dizem tudo. Na primeira, "Congresso contra Collor: uma tarde cara para o País", o jornal colocava em sub-títulos os entraves para o governo: "benesses" para funcionários públicos, deputados aumentando em 84% os seus próprios salários, as vantagens para os aposentados (com a ressalva da possibilidade do veto presidencial) e o retorno do cartel do trigo. No dia seguinte o "JT" voltou à carga com outra manchete: "Collor enfrenta seu inferno astral". E alinhavou os percalços: problemas no Congresso: mais 700 bilhões de cruzeiros de despesas com as medidas aprovadas (se não usar veto); as difíceis promessas feitas aos credores; as concessões nos salários dos "descamisados" e a perspectivas de "nova trombada" no Congresso com a questão da rolagem da dívida nos Estados.

-Quem leu atentamente texto publicado na capa de Cidades na quarta-feira, sob o título "Passageiros célebres são afetados" percebeu que só uma das celebridades citadas foi afetada pela greve de metrô e, mesmo assim, indiretamente. José Ramos Tinhorão cumpriu sua agenda a pé, o roqueiro Clemente lamentou mais o aumento da poluição e o trânsito caótico. O escritor João Silvério Trevisan nem precisou sair de casa. O advogado Márcio Thomas Bastos "disse que a paralisação não causou grandes problemas". O padre Luís Antônio Marchioni afirmou que a zona leste "sofreu mais com a falta do trem". Sobrou Carlito Maia, o único parcialmente afetado porque nem é passageiro contumaz do metrô. Sua empregada, sim, se atrasou, alegando a greve como motivo, mas chegou.


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