Folha de S. Paulo


O leitor que se lixe

Não se pode discordar da importância da inflação no dia-a-dia do brasileiro. Há anos que o país convive com este problema e ninguém, em sã consciência, pode dizer que notícia da inflação, principalmente dos índices que a medem, dispensa destaque no noticiário - em todos os noticiários. Esta certeza pode estar clara na cabeça dos cidadãos mas desafia a lógica de jornais brasileiros.

Na terça-feira foram divulgados mais dois índices indicativos do comportamento dos preços em maio. Eles refletem (simplificando para não entrar em maçante discussão econômica) a inflação, o seu movimento depois do Plano Collor, cujo objetivo principal declarado é o de acabar com ela. Nada mais normal do que realçar os números. Dos quatro principais jornais somente dois destacaram a notícia na sua primeira página, esta Folha e o "Jornal do Brasil". "O Globo" e "O Estado" optaram por registrar internamente os dígitos que funcionam como autêntica melodia para alguns poucos brasileiros e marcha fúnebre para a arrasadora maioria.

Mas o descaso com o leitor não se limitou a este movimento de esconde-esconde de "O Estado" e "O Globo". Os dois jornalões que trouxeram a notícia em primeira página o fizeram em pecado. A Folha, por exemplo, que separou sua manchete para a cifra, enveredou por um caminho complicador: desinformou ao informar o índice nacional de preços ao consumidor. E o "Jornal do Brasil", ao dar um balanço retrospectivo dos índices, esqueceu-se de projeções determinantes.

Uma das críticas sérias feitas à imprensa diária brasileira, em geral, é que ela não contextualiza seu noticiário. Contexto é o conjunto, a totalidade. Contextualizar notícia e colocá-la dentro de seu todo, inseri-la no momento histórico, torná-la compreensível dentro de um cenário, explicar os porquês, as razões dos fatos. Pode ser feito com um texto, frases ou até um único título. De que adianta saber que a inflação em maio é de 7,31% se não se sabe qual a importância desta cifra em relação à conjuntura passada e o que nela está embutido pode representar no futuro?

"Alta de preços em maio atinge 7,31%" era a manchete da Folha na quarta-feira. No caderno de Economia, na terceira página. "O Estado" informava: "IBGE apura inflação de 7,31% em maio". "O Globo" ia na mesma toada lá dentro: "INPC de maio registra inflação de 7,31%". Enunciando destoante aparecia na capa do "Jornal do Brasil", no pé: "Inflação cai em maio por todos os índices".

Se houve quem tentou contextualizar a notícia foi sem dúvida, o "Jornal do Brasil". Todos os índices mostraram uma queda da inflação em maio, uma desaceleração, para usar a palavra preferida dos economistas. Os outros jornais preferiam contar a novidade no esquemão frio dos fatos encadeados. Ou seja, acrescentavam que o índice apurado no mês anterior era de tanto, sempre maior do que os índices de preços apurados em maio, fosse do IBGE, do Dieese, da Fundação Getúlio Vargas e da Fiped.

Não se pode acusar a Folha, "O Estado" e "O Globo" de omissão de dados que permitam a comparação. É discutível, sim a maneira como foi hierarquizada a notícia, sem enquadramento no contexto. Esse jeito de dar a notícia revela, contudo, outras coisas mais instigantes e, em alguns casos, o quão desimportante pode ser o leitor para alguns jornais - cuja preocupação em mostrar os dentes ao governo é maior do que a obrigação de noticiar.

Do ponto de vista do leitor, aparentemente, quem fez o melhor trabalho foi o "Jornal do Brasil". Mostrou, em gráfico publicado na capa, a curva descendente da inflação de março a maio. Deu voz ao governo que, por intermédio de Antônio Kandir, secretário da Polícia Econômica, disse que "os indicadores tradicionais mostram que as taxas de inflação caem tanto mais quanto elas se afastam dos efeitos da inflação do cruzado novo" etc. Ou seja, explicou-se o passado comparando-se índices. Não havia projeção para junho, mesmo sabendo-se que o presidente do IBGE explicou que a alimentação vem pressionando os índices, no sentido de alta. Por isso o jornal, aparentemente, estava do lado do leitor. Deu notícia incompleta apesar de ter afirmado, no texto, que o resultado não significa que a "tendência de taxas declinantes seja garantida daqui para a frente. "Optou por deixar gravada uma boa notícia na sua primeira página. Faz tempo que a "JB" evita notícias negativas para o governo e desta vez (mesmo longe da inflação zero), havia ótima oportunidade de mostrar aos brasileiros que, apesar da sensação de que a inflação retorna, ela "na verdade" não sumiu mas está "murchando" desde março.

Do ponto de vista do governo, aparentemente, a pior noticia veio na capa da Folha. Bastou colocar a palavra inflação, o verbo "atingir" e a cifra de 7,31% em manchete. O leitor, neste caso, teria menos importância do que a magnitude de um número ou a história recente dele. Nenhuma comparação, por intermédio de gráficos, com o cipoal de índices com a qual o brasileiro convive para saber como vai ser sua vida. Nenhuma afirmação adicional sobre o significado real destes 7,31% de INPC ou dos 9,08% do IGP da Getúlio Vargas. Também digo aparentemente porque, apesar do peso de um dado sobre inflação em manchete , projetos levam à alta em junho. E a Folha não só minimizou a taxa descendente da inflação (boa para os cidadãos e para o governo) como esquece-se da projeção (ruim par todos). Só no dia seguinte o jornal aproveitou para dar, em texto espremido na seção de Economia, que a "!tendência" da inflação é a base de alta em junho. Trocando em miúdos: podia ter sido pior (para o governo).

"O Globo" e "O Estado" preferiram não colocar a noticia na capa. Se fosse há algumas semanas não tenha dúvida de que a manchete de "O Globo" iria chacoalhar seus leitores com o "despencar" da inflação. Afinal, são quatro índices importantes registrados queda. Mas a orientação no jornal mudou, por enquanto. Conforme revela a revista "Isto É", da semana passada, as ordens nas organizações Globo são as de manter a Rede Globo no papel de "alisar" o governo e "soltar o noticiário" no jornal "O Globo". (Isto explica três manchetes seguintes do jornal no início do mês: "Procurador geral da república recorre ao STF contra o Governo"; "Collor perde apoio no Congresso"; "Procurador da República teme que Collor se torne ditador". O empresário e jornalista Roberto Marinho, ainda conforme a "Isto É", quer avisar ao governo onde está a fonte tradicional do poder nos últimos tempos. Marinho amarga ainda duas derrotas junto ao governo Collor: perdeu na concorrência do satélite Brasilsat e assiste à tentativa de dinamitação de um cartel do qual sua empresa NEC é parte integrante - junto da Ericsson e a Equitel -, o das Centrais Telefônicas Públicas.

"O Estado" também ficou na moita com a inflação. Ultimamente tem desfechado seu poder de fogo mais em direção aos auxiliares do presidente (chegou a pedir a cabeça do ministro Bernardo Cabral em editorial). No entanto, neste assunto inflação, na quarta-feira, preferiu punir seu leitor ao omitir as cifras e seu contexto em capa. Não deu importância a um assunto importante para o leitor e para o governo.
O fato é que a preocupação de jornais no posicionamento em relação ao governo definiu o lugar, o destaque e a forma da noticia dos índices da inflação. E o leitor, ora, que se lixe.

RETRANCA

Os quatro grandes jornais concorrem para saber quem faz o melhor caderno da Copa do Mundo. A Folha ganha disparado com o números do DataFolha, que medem até o tempo de posse da bola na defesa durante um jogo, mas perde nos textos de humor. "O Estado" tem Luís Fernando Veríssimo, o "Jornal do Brasil" tem Tutty Vasques (cronista de sua revista de Domingo) e "O Globo" tem o Agamenon Mendes Perderia (da "Casseta Popular" e "Planeta Diário").

- Leitores têm ligado para reclamar da falta de fotografias (muitas) dos gols na Copa. Com a pasteurização do videoteipe os jornais estão negligenciando na escolha do material fotográfico. "A essência do futebol é o gol" conforme o leitor João Antônio de Moraes Pereira que ligou de São Carlos (SP) para reclamar.

- Emissoras de televisão e até esta Folha fizeram confusão, no noticiário esportivo, com a República da Irlanda, ou Eire, país independente que nada tem a ver com a Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales) e com o Reino Unido (que incorpora a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte, ou Ulster). Fica aí o registro a pedido do leitor Carlos Augusto Leite Pereira.

-A Copa tem dado boa oportunidade para os jornais que utilizam cores em suas páginas [Folha e "O Globo"] exercitarem seus equipamentos. O saldo, até aqui, tem sido largamente positivo a favor de "O Globo" que, desde o início da competição, não deixou de publicar fotos a cores nenhum dia.

- Fora de futebol, somente esta Folha, na Ilustrada de quarta-feira, destacou notícia sobre a proposta de um estatuto para o Instituto de Arte e Cultura, que incorpora acervo, dinheiro, móveis e imóveis das extintas Funarte, Fundacem e Fundação do Cinema Brasileiro. Conforme a Folha, a proposta revela o "lado intervencionista da política cultural" do governo Collor. A grande imprensa não está discutindo este assunto.


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