Folha de S. Paulo


A astúcia, o faro jornalístico e a manipulação

A tecnologia se sofisticou mas as técnicas do jornalismo continuam as mesmas do século passado. Balzac e Maupassant anotaram os artifícios e os humores de jornalistas e de donos da imprensa do século 19. Pouca coisa mudou. O episódio vivido por esta Folha e pelo candidato Luis Inácio Lula da Silva nesta semana, revela que a linguagem continua tão manipulável e os mecanismos de decisão editorial tão fluidos como no século 19.

Georges Duroy, o famoso Bel-Ami de Maupassant, um jornalista vaidoso e oco, subiu de vida Às custas de sua esperteza do que seu domínio da língua e das técnicas da profissão, tão desenvolvidas -ou incipientes-como agora.

Maupassant anotou o perfil de um jornalista correto, pontual e meticuloso. Era o "monsieur" Boisrenard (ou Raposa do Bosque, em português), um experimentado profissional que trabalhou em onze jornais sem modificar sua maneira de ver e fazer as coisas. Passava de uma redação à outra como se muda de restaurante, percebendo apenas que a cozinha não tinha exatamente o mesmo sabor. As opiniões políticas e religiosas eram para ele coisa estranho. Trabalhava como um cego que nada vê, um surdo que nada ouve e um mudo que nunca fala.

Evidente que o velho Boisrenard foi substituído pelo saltitante Bel-Ami, o apelido de Georges Duroy. A redação de "La Vie Française" necessitava de alguém menos ponderado. Bel-Ami estaria bem talhado para o figurino do novo jornalista que Maupassant desenhou para substituir a fatigada raposa do bosque. "Deve estar sempre acordado, e sempre em guarda, desconfiado, prevenido, ardiloso, alerta e flexível, armado de todas as astúcias e dotado de um faro infalível para descobrir a notícia falsa num primeiro olhar, para julgar o que deve ser dito e ocultado, para adivinhar o que pode surtir efeito junto ao público, e ele deve saber apresenta-la de tal maneira que o efeito se multiplique".

A Folha acaba de aplicar muito bem esta definição. Com mais propriedade do que o próprio Bel-Ami, que acabou batendo-se em duelo por causa de uma notícia mal apurada. Entretanto, se no final deste século os duelos com garrucha estão praticamente abolidos, as verdades de Maupassant ainda não.

Veja o que aconteceu esta semana. A Folha está sendo processada por Lula. A operação jornalística que provocou tal efeito consistiu em tomar declarações de um economista do PT, dar-lhes a devida importância política, e transformá-las em manchete. Na boca de Lula.

A coisa veio à luz na terça-feira, em duas versões. O primeiro clichê foi impresso com a seguinte manchete: "Contra a inflação, Lula propõe trégua salarial sem reajuste". Este enunciado foi trocado, em segundo clichê, para algo mais "preciso": "Contra a inflação, Lula quer salários sem aumento real". O texto de primeira página dizia que, caso vença a eleição, "Lula pretende negociar uma 'trégua salarial' com os sindicatos para não dar imediatamente um aumento real de salários através da reposição das perdas provocadas pela inflação". O texto prosseguia informando que está ideia tinha sido apresentada pelo economista Paulo Sandroni, representante do PT num seminário realizado no fim de semana passado na Universidade de São Paulo.

Quem falou foi Sandroni e não Lula. E Sandroni sequer citou o nome de Lula. A notícia do seminário foi muito bem recolhida e muito bem editada. A proposta do economista Sandroni é serena, coisa até de bom senso, vinda do PT. Tudo indica que Lula ou Collor, qualquer que seja eleito, terá que tomar medidas drásticas que talvez impliquem numa trégua salarial. Mas Lula não teve peito de enfrentar o assunto.

A Folha estava alerta, previdente e armada de todas as astúcias quando anotou a análise do economista do PT. Na crítica interna que fiz da manchete, na terça-feira, escrevi que o uso da sigla PT no lugar do nome de Lula seria mais adequado na manchete. O erro não foi um lapso do redator. Houve intenção de redigir a manchete daquela maneira.

Não é segrego que a Folha tenta se livrar da imagem de jornal petista. Comenta-se que a redação do jornal é petista. Isto já foi assunto aqui e começa a ficar monótona sua repetição. Mas, ao distorcer a notícia, com um titulo inadequado, a Folha multiplicou ainda mais os seus efeitos porque não só evidenciou discussões internas e importantes dentro do PT como acabou pegando Lula numa armadilha.

No final das contas, é bom levar um processo de Lula. Demonstra mais uma vez, a independência de um jornal que tem recebido ataques de todos os lados. Para ficar apenas nos dois pólos de agora, os simpatizantes de Collor garantem que ele é perseguido e os petistas mantêm com a Folha uma relação de amor e ódio, batem palmas num dia e querem empastelá-la no outro.

Do ponto de vista de sua imagem, é bom para um jornal discutir com todas as forças políticas. Isto só aumenta sua credibilidade. Mas há uma coisa que um jornal jamais deve fazer, brigar com a notícia. Foi o que a Folha fez na manchete de terça-feira, de maneira canhestra. Apesar de noticiar o certo, titulou o errado. Teve faro para a notícia a acabou punindo seu leitor com uma manchete propositadamente equivocada, feita para conseguir o efeito que procurava. Nem o astuto do Bel-Ami chegou a tanto.

RETRANCA

- No capítulo pérolas da semana, reproduzo trecho do editorial de capa de "O Globo" de quarta-feira. Sob o título "Cadeia de contradições", o editorialista diz que Lula deixou três questões sem os devidos esclarecimentos: "Primeiramente não explicou -nem lhe foi perguntado-que tipo de socialismo pretende implantar no Brasil: o da União Soviética ou o da Albânia, da Romênia, de Cuba?". Se ninguém perguntou como é que ele ia explicar?

- Duas manchetes de "O Estado de S.Paulo" também entram para as pérolas. Na terça-feira o matutino deu a seus leitores uma notícia velha de pelo menos 17 dias: "Collor sai atrás de voto e Lula busca aliança". Na quarta-feira, um dia depois de Brizola ter subido no palanque em Novo Hamburgo (RS), "O Estado" anotou: "Comício do PT fica sem Brizola e Covas".

- Mas justiça seja feita, na quinta-feira o "O Estado" foi quem melhor aproveitou uma declaração textual de Leonel Brizola em manchete: "Brizola cozinha Lula em água fria". Foi assim que o líder pedetista definiu seu apoio a Lula.

- É digno de registro também a maneira como "O Globo" deu a pesquisa do Ibope na sua capa de sexta-feira. Foi com uma pequena menção na parte inferior de sua capa, com o título seco: "Ibope: Collor, 49%; Lula, 40%". Nas bancas do Rio, o "Jornal do Brasil" tornava escandalosa a notícia que "O Globo" também tinha, também publicou, mas decidiu não aproveitar: "Lula ganha seis pontos no Ibope em quatro dias".

- Os responsáveis (ou irresponsáveis) pela revista mensal e satírica "Casseta Popular" informam que o ombudsman da publicação estreia no número de janeiro. Foi nomeado para o cargo o professor Francisco Breuba. Ele lê todos os artigos num ônibus e os remete pelo correio. Se a experiência der certo, é provável que a "Casseta Popular" abra um curso para ombudsmen (o plural de ombudsman) no fim do ano que vem.

- Leitores reclamam da dificuldade em ligar para cá, no telefone (011) 874-2896. De fato, o ramal tem estado permanentemente ocupado com os telefonemas de leitores. Solicitações de mais um ramal não podem ser atendidas porque o ombudsman, que é um só, não pode falar com duas pessoas ao mesmo tempo. A única recomendação que posso fazer é que insistam, ou então telegrafem ou escrevam. Caso prefiram, podem mandar telegramas com o número do telefone que eu ligo de volta. Não prometo resolver todos os casos que me chegam mas posso informar qual encaminhamento foi dado. Estou à disposição dos leitores de segunda a sexta-feira, das 14h às 18h. Não tenho condições de falar com ninguém fora desse horário e os leitores que desejarem conversar pessoalmente serão muito bem recebidos, mas por favor, sugiro marcar hora com antecedência.


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