Folha de S. Paulo


Críticos privilegiam origem do autor para estigmatizá-lo sem ler suas obras

AP Photo/Craig Ruttle
O escritor nigeriano Chinua Achebe, morto em 2013

Assisti recentemente a um debate entre escritores brasileiros numa feira internacional. Quando a mediadora abriu para as perguntas do público, um senhor francês pediu a palavra: "Como é que vocês, vindos de um país como o Brasil, explicam que só haja escritores brancos nesta mesa?".

A pergunta não era uma pergunta, claro, a menos que o francês fosse um idiota e não soubesse que no Brasil a discriminação e o racismo imperam mais ou menos dissimulados há séculos.

O efeito foi imediato. Constrangidos, os cinco escritores na mesa, quatro deles predominantemente brancos, tiveram de se explicar, exprimindo com maior ou menor ênfase sua vergonha e seu repúdio ao racismo no país. O francês se deu por satisfeito.

Nessa hora, a mediadora achou por bem passar a palavra à única representante negra na delegação brasileira, uma historiadora que se encontrava na plateia e que começou por constatar o óbvio: correspondendo a mais da metade da população do país, os negros não estão representados como deveriam na sociedade.

Até aí, nada a acrescentar. Sou um defensor de primeira hora das políticas de ação afirmativa que buscam garantir aos negros os mesmos direitos e as mesmas condições de acesso, participação e inserção de que desfrutam os brancos na sociedade brasileira, sabendo que isso pode não ser suficiente, mas é o mínimo e o começo para tentar reparar desigualdades e injustiças irreparáveis sofridas ao longo de séculos.

Ultrapassada a constatação, entretanto, a historiadora deu um salto de raciocínio: o problema, segundo ela, não era apenas a sub-representação dos negros naquela mesa e na sociedade brasileira; o problema era o que pensavam e diziam os escritores ali reunidos, representando a literatura do país. Vítimas do colonialismo, perdidos num labirinto, eles reproduziam sem se dar conta o discurso eurocêntrico do opressor.

Confesso que por essa eu não esperava, embora o argumento não seja novo nem original. Durante uma discussão recente, um amigo me perguntou se eu já tinha parado para pensar que, sem os horrores do colonialismo e da escravidão, a arte que mais admiro (eu estava falando de Joyce) talvez não existisse.

É possível. Como talvez tampouco existisse um monte de outras coisas que eu prezo e que se desenvolveram em contraposição a tudo o que o colonialismo e a escravidão representam, dentro das sociedades que os promoveram.

O que há de novo nesse discurso normativo aplicado às artes é o pressuposto generalizador que, privilegiando o lugar do autor, permite ignorar a singularidade das obras.

Em sua intervenção, a historiadora parecia deduzir que o discurso dos autores brasileiros (ela não entrou em detalhes, mas na véspera havíamos falado de Kafka e Tolstói, entre outros) reproduzia o discurso do colonizador, do opressor, simplesmente por fazer referência a autores europeus.

Bastaria analisar a obra desses escritores para entender que, mesmo quando circunscritas ao mundo literário do opressor, existem diferenças, incompatibilidades e contradições irreconciliáveis. Bastaria ler Kafka para entender que sua obra foi uma das representações mais potentes jamais concebidas contra o discurso do opressor, seja ele colonizador ou simplesmente agente normativo.

Quando, nos anos 70, o nigeriano Chinua Achebe acusou Joseph Conrad e seu "Coração das Trevas" de racismo, estava tratando de uma obra. É possível concordar ou não com a acusação (outros escritores negros, como Caryl Phillips, discordaram da interpretação de Achebe sem deixar de admirá-lo), mas são argumentos ancorados na leitura e não numa projeção fantasmática do autor.

A novidade agora diz respeito à possibilidade de se isentar da leitura (porque esta presume reflexão e contradição) para atribuir ao autor, pela simples suposição de sua origem, um estigma que o faça corresponder a priori à imagem e ao discurso que queremos atribuir a ele e que seja suficiente para banir sua obra.

O mais assustador e grotesco, tratando-se de literatura, é que essa estratégia anuncia uma "compreensão" que dispensa tanto o livro como a leitura. É o que permite pôr todos os escritores brasileiros brancos no mesmo saco, supostamente unidos pelo racismo, além de desautorizar seu pensamento crítico, com base no mesmo preceito.

Isto, sim, lembra muito o velho discurso eurocêntrico que não admite diferenças entre as diversas manifestações do outro, reduzindo-as todas, para esvaziá-las da potência de suas singularidades, a um amálgama do exótico.


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